Porto Alegre e Medellín podem trocar aprendizados de ações cidadãs
A democracia é como uma planta, precisa ser cuidada, regada. Ela crescerá em direção a luz. Se alguma coisa impedir a chegada de iluminação, ela poderá fenecer. E a luz, nesse caso é a participação cidadã. O bem comum precisa estar acima de interesses de setores que defendem o que é melhor para si. Essa analogia simplória talvez explique o quanto precisamos estar atentos aos sinais que a nossa biodiversidade de plantas vem demonstrando ao longo do tempo.
Cheguei a essa conclusão durante a live com a professora Adriane Ferrarini e a psicóloga Patrícia Pancotto. Na 14ª edição do programa Nas Ondas da Transição, onde tratamos do tema cultura cidadã e participação, continuamos tratando do que vimos em Medellín (confira o texto da live anterior, Medellín inspira portoalegrenses).
Adriane esteve à frente da terceira missão à capital da Antioquia, na qual fiz parte junto com outras pessoas, incluindo integrantes do coletivo POA Inquieta. Sou uma das articuladoras do POA Inquieta, assim como Adriane. Ela esteve lá apresentando suas pesquisas de pós doutorado, onde levantou várias informações, inclusive de similaridades de Porto Alegre com Medellín. Para ela, “somos cidades hermanas”. Apesar, é claro, da irmã colombiana ter tido uma realidade muito mais dramática, de ter sido uma das cidades mais violentas para ser uma das mais criativas do mundo em 20 anos.
Clique aqui para conferir a participação da professora Adriana no Fórum de Inovação Social para a Participação realizado no dia 14 de novembro de 2021, onde fala da relação Medellín e Porto Alegre.
A doutora em Sociologia pela UFRGS, professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Unisinos se interessou em Medellín a partir da convivência com o POA Inquieta. Para ela, tanto lá como aqui, há iniciativas de “alternativas emancipatórias”, que envolvem inovação social, como a economia solidária. Até hoje, Medellín utiliza os processos do Orçamento Participativo, que nasceu na Capital gaúcha para envolver a comunidade nas decisões de onde aplicar os recursos públicos.
‘Uma população que participa, conhece os seus problemas, tem mais condições de se auto organizar. Conhecer a própria a realidade é um elemento para a autogestão’, comentou a professora, reforçando que em Medellín, o processo de participação foi um projeto de estado de longo prazo e não de uma gestão.
Vale lembrar que o próprio coletivo POA Inquieta entregou uma carta para os candidatos à prefeitura, na última eleição, reforçando a necessidade de se fortalecer instâncias de participação. Inclusive promoveu um debate entre os candidatos, onde apontou a necessidade de se colocar em prática políticas de longo prazo, com a consulta da sociedade. Clique aqui para acessar a carta.
Em Medellín, a participação social é monitorada. A cada dois anos são apresentados dados pela Universidade de Antioquia, que acompanha o nível de participação e do exercício da cidadania. Clique aqui para conferir os laboratórios de participação cidadã.
O primeiro passo, para a professora, é não negar a existência de conflitos, mas sim, procurar entender o que há por trás dos comportamentos. Esse é um dos motivos que lá foram promovidas rodas de conversa entre os moradores. Pois muitas coisas precisavam vir à tona. Inclusive muitas obras foram realizadas para solucionar conflitos entre a população.
Outro caso é o transporte por teleféricos, que possibilitou que muitos bairros de periferia tivessem acesso ao centro da cidade. Foi uma demanda das comunidades que foi viabilizada pelo poder público. Em Medellín, a principal empresa estatal EPM, investe seus lucros em melhorias na própria cidade. No Rio de Janeiro, no Complexo do Alemão, também se instalou um teleférico parecido com os de Medellín, mas não demorou muito tempo em operação. Segundo a pesquisadora, a população carioca não foi envolvida no processo, saiba mais sobre a situação do teleférico do Rio aqui.
Colaboração na veia
Saber participar exige exercícios, musculatura emocional, ou melhor, encarar a resiliência como aprendizado. E aqui em Porto Alegre temos tido exemplos muito interessantes de como é possível fazer as coisas com participação de um jeito diferente. Um exemplo que vivi, foi o da casa colaborativa Simplify. Foi um sonho que foi realizado e que promoveu uma ampla colaboração de pessoas. Confira o vídeo gravado pelo Rafael Urquart, um dos idealizadores do espaço. Ele é autor do livro Para que simplificar? O fluxo em nós.
A Simplify foi um laboratório vivo de autogestão, onde as pessoas ocupavam espaços e pagavam conforme podiam. E cada um que chegava era “anfitriado” por alguém da casa. Eu mesma, acolhei e apresentei o espaço para alguns visitantes. As principais decisões eram tomadas em grupo. Participei de muitas rodas de conversa por lá. Inclusive colaborei com doações em dinheiro, de objetos, como vassoura, copos, bandeja, cadeiras etc. Em junho de 2019, fizemos lá em conjunto com a Net Impact, a Nossa Porto Alegre e a Todavida a Semana do Meio Ambiente. Conheci a Patrícia Pancotto lá. Ela era uma das integrantes do grupo mais ativas.
“Viver a Simplify foi uma das experiências mais transformadoras da minha vida”. Como psicóloga clínica e organizacional, ela ocupou o espaço para sua atuação profissional e também presenciou muitas conexões e processos de aprendizagem. “Tínhamos biblioteca, venda de produtos que as pessoas pagavam por conta, não tinha ninguém cuidando”.
Na Simplify foram realizados cursos, encontros de vários tipos, a maior parte para fomentar o diálogo, a colaboração, a regeneração. Um dos eventos mais marcantes para mim foi o Art of Hosting Leveza nas Relações realizado em fevereiro de 2019 (que se traduz aqui como a arte de anfitriar conversas significativas).
Patrícia revela: para a boa convivência é fundamental o cumprimento de acordos, a comunicação precisa ser clara e o respeito deve ser recíproco. “Era um espaço de fazer coisas, de agregar. Nós tínhamos acordos claros, como deixar a sala melhor do que quando a encontrou.” Ela acredita que a vivência na Simplify foi determinante, inclusive, para encarar a pandemia. A casa encerrou suas atividades em 2020 devido à pandemia.
A professora Adriane pesquisou as casas colaborativas de Porto Alegre e encontrou os mesmos princípios de iniciativas de economia solidária. “Me chamou a atenção esse fenômeno em Porto Alegre. Me surpreendi, porque encontrei lá as mesmas características de coletivos de autogestão de economia solidária. É outro paradigma, diferente da economia de mercado, em que os vínculos sociais e as formas de decisão são totalmente integrados”.
Adriane adianta que entre seus objetos de pesquisa agora estão o funcionamento do próprio coletivo POA Inquieta. Ela cita Boaventura de Souza Santos, seu orientador, que ratifica “a importância de se viver essa democracia de alta intensidade, reforçada por ações do cotidiano”. Isso envolve não só aspectos racionais, mas muitas questões que vão além do inconsciente. As decisões são olho no olho, envolvem dimensões afetivas, para romper de paradigmas de valor, de relações humanas.
Para saber mais
Casa Liberdade, a pioneira
Antes da Simplify, Porto Alegre teve a Casa Liberdade, onde muita gente aprendeu e vivenciou experiências disruptivas por lá. Depois dela surgiram outras casas similares em Porto Alegre.
Confira a reportagem que fiz em 2014 para o ExtraClasse, onde conto um pouco sobre o que rolou por lá. Fiz diversos cursos na Casa Liberdade. E, confesso, espaços como essas casas colaborativas são excelentes para o aprendizado da cultura cidadã.
Clique aqui para acessar a live com a Adriane e a Patrícia.
Confira o texto e a primeira live que fiz sobre Medellín