Uma leitura para repensarmos a construção da nossa visão de mundo
Talvez nunca na história tivemos tanta necessidade de nos regenerarmos. Guerras, intolerância, destruição dos ecossistemas. Em nome do quê mesmo? Diante da história da humanidade, é bem recente o conhecimento de que o impacto do que consideramos progresso está nos levando ao agravamento do aquecimento global e a nossa própria extinção. No livro Regenerantes de Gaia, Fábio Scarano faz várias relações do quanto precisamos ter consciência desse processo.
Para isso, o autor intercala visões objetivas e subjetivas. Scarano lança mão de três estilos de narrativas para abordar Gaia, através do tempo, da sua essência e do imaginário. Três caminhos, interpretações que proporcionam uma visão de múltiplas perspectivas.
O professor da PUC Rio relaciona a necessidade de regeneração utilizando tanto descobertas de cientistas renomados, quanto cineastas, filósofos e muita sabedoria ancestral. E para completar e dar mais asas à imaginação, seu livro conta com ilustrações de Lua Kali que me levaram a interpretações múltiplas, de uma complexidade instigante, sempre permeada de vida e suas possíveis relações.
O diálogo entre um cacto e uma bromélia, sobre o conhecimento adquirido pelos seus ancestrais e que estão registrados nas suas memórias para sobreviver diante de diferentes climas. Vale conferir no YouTube a sua menção a essa descoberta, pois como cientista ele pesquisou uma espécie de bromélia no Parque Nacional de Itatiaia. Clique aqui para ver.
Os textos coloridos foram a cereja do bolo. O autor utilizou seu extenso conhecimento de ecologia para explicar o quanto vários fatores interligam as espécies. Consegui compreender direitinho pelo fato de ter feito muitas aventuras e observado a exuberância de relações em árvores da Mata Atlântica, onde vivem uma enorme teia de vida.
A tônica é evidenciar o quanto o apartamento ao longo do tempo dos seres humanos da natureza vem nos deixando marcas e exigindo que tomemos a consciência do nosso contexto, não só do externo, mas do que está dentro de nós. Ele ressalta que o estado do planeta e das próprias pessoas hoje é resultado de uma visão da Ciência que dissecou e pesquisou os elementos da natureza de forma separada.
Regenerantes de Gaia é um livro que fura bolhas, relacionando distintas áreas, mas ele exige uma atenção especial e uma consulta sistemática às notas. Senti falta delas estarem no pé de página. Mas talvez pelo fato de serem muitas, a editora preferiu deixar para o final do livro. As notas desse livro, são muito mais que notas. São revelações, conexões e muito conhecimento.
Aprender a ouvir o coração, já é um caminho
Fábio Rubio Scarano é acessível e muito simpático. Confira as respostas às perguntas que ele me respondeu especialmente para este espaço.
1.Diante do atual contexto planetário, o que considera mais difícil para se regenerar gaia?
O que chamo de regeneração de Gaia é o processo de cicatrização das fraturas que a modernidade criou nas relações das pessoas umas com as outras, com a natureza, e consigo mesmas. Ao longo dos últimos 300 anos, o ser humano dito moderno transformou tudo em commodity, até a si próprio. Para regenerar Gaia, nós precisaremos nos reconectar e, para tal, eu creio que precisamos sentir que somos parte de um todo, sagrado e com partes interdependentes. Precisaremos reconstruir confiança mútua e, principalmente, o amor – à natureza, ao próximo, a nós mesmos.
- Vivemos imersos em informações, muitas vezes, superficiais e supérfluas. O que acha mais importante para as pessoas comuns saberem distinguir entre o essencial e o supérfluo?
Essa pergunta me ajuda até a prestar um esclarecimento quanto à questão anterior. Falei em “reconectar” e é curioso que “estar conectado” hoje em dia signifique estar permanentemente ligado a diversos aparelhos eletrônicos que trazem um volume imenso não só de informação, mas também de desinformação. Trazem presença, mas também significam ausência. Espero que ao longo da pandemia tenhamos aprendido a usar mais sabiamente essas ferramentas – mais como elementos de conexão afetiva entre as pessoas, que de disseminação de raiva e desentendimento. Mas, ainda assim, sua pergunta é muito difícil! Pessoalmente, eu acho que ouvir o coração ajuda nessa distinção, mas isso certamente é bem mais fácil falar que fazer. Há que ser tratado como um exercício e aprendizado diário.
- Como a academia deveria se adaptar para a transição civilizatória?
Saindo do seu castelo e indo pra rua. Em alguma medida isso já vem acontecendo, mas ainda há muito o que se fazer. Vejo hoje iniciativas como o Selvagem Ciclo de Estudos – no escopo do qual o “Regenerantes de Gaia” e vários outros livros vêm sendo publicados pela Dantes Editora – , o Fé no Clima e festivais como o LivMundi – e o Seres-Rios pra mencionar alguns – importantes espaços nos quais cientistas como eu conversam, trocam, ouvem e aprendem com indígenas, artistas, religiosos, jovens e diversas outras vozes e visões de mundo.
A transformação que o mundo precisa não vai ser movida exclusivamente por nenhuma hegemonia – nem política, nem intelectual, nem ideológica, nem mesmo pela que é imposta por elementos de uma única espécie – mas sim pela mistura.
- No livro, você cita o movimento “tecnogaianismo”. Você acredita que esse seja um caminho viável para superarmos os desafios do agravamento das mudanças climáticas?
Foi minha querida amiga Lua Kali – jovem artista e ilustradora do “Regenerantes” e também do “Livro dos Seres Invisíveis” de Dorion Sagan – recém lançado pela linha Selvagem da Dantes que me apresentou a movimentos como o Tecnogaianismo, o Ecopunk e o Solarpunk. A interação com a Lua durante a produção do livro foi decisiva pro resultado final, inclusive no conteúdo. Ao final da minha fala no Selvagem de 2018 , ela se aproximou e me disse “eu desenho isso que você falou a respeito”. Ela me mostrou alguns dos seus desenhos ali mesmo, no seu celular. Incríveis! Como as coisas não são por acaso, minha editora e amiga Anna Dantes, já era amiga e fã da Lua há tempos. Em minutos combinamos que ela ilustraria o livro e o resultado você já conhece.
Quanto aos caminhos para superarmos o desafio das mudanças climáticas e outros, eu creio que não há “bala de prata”. Todos os movimentos do bem vão precisar juntar forças e ideias, esperança e disposição, pra encarar e eventualmente superar tais desafios.
Fabio Rubio Scarano é graduado em Engenharia Florestal pela Universidade de Brasília, Brasil, e obteve seu Ph.D. em Ecologia na Universidade de St. Andrews, Escócia. Ele é Professor associado de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, desde 1993. Ele é também membro da Sociedade Linneana de Londres (desde 1995). Seu campo de estudo é a questão climática dentro da perspectiva de gaia.