Vírus sem nomes conjugados a hospitais lotados, plano de saúde falido (IPE), desmantelamento do Estado, mudanças climáticas, ansiedade…
Algumas viroses andam por aí promovendo estragos. Perdi a conta de quantas pessoas conversei nos últimos dias que me relataram que têm amigos e familiares que estão com tosse, dores no corpo, uma gripe estranha, com diarreias entre outros sintomas. Escrevo hoje sobre esta situação porque estou sentindo na pele, ou melhor, em várias partes do corpo, o que é essa tal virose.
Para começo de conversa, vale lembrar que estamos em um momento de transformações climáticas. Vou expor aqui algumas conexões sobre essa situação. Hipóteses para promover a reflexão. Alguém já disse que as perguntas movem o mundo. E quanto mais conheço o ambiente acadêmico, mais percebo o quanto precisamos urgentemente de pesquisadores, de governos, de tomadores de decisão e formadores de opinião que tenham consciência da interdisciplinariedade de tudo que engloba essa crise climática. Ela é muito mais impactante do que se constata durante e no pós-desastre. É uma crise sistêmica, complexa. Promove sequelas, rastros inimagináveis, mexe com diversos sistemas da biodiversidade.
Quem vive em Porto Alegre, em regiões densamente ocupadas e que foram afetadas pela enchente, está respirando um ar com várias micro, nano partículas de um pó, resquício da lama da água. De novo, reitero, essa é uma associação minha para tentar juntar peças de um quebra-cabeça sobre essas semanas pós-desastre. Não existe pesquisa sobre isso (a menos que eu saiba).
O fato é que fui em três médicos nos últimos dias e todos foram taxativos em afirmar: têm várias viroses circulando por aí. O pior é que além de não se saber exatamente como lidar, os hospitais estão lotados. E aí vou contar o que passei com minha tia, de 85 anos.
Reconstruir o quê?
Ela é professora aposentada, paga a vida inteira o IPE (PAMES), o plano de saúde dos funcionários estaduais do RS, que leva uma boa parcela do salário raquítico que recebe. Pois bem, ela precisou ir à emergência do Hospital Ernesto Dornelles, a instituição da Associação dos Servidores Públicos do Estado, que sempre foi “o hospital” do IPE. Chegamos lá, estava lotada como nunca tinha visto antes. Perdi as contas de quantas vezes já a levei lá e nunca tinha me deparado com essa situação. Como teria que esperar umas sete horas pelo atendimento, segundo informações que tivemos depois da triagem, resolvemos ir para outro hospital.
Chegamos no setor de convênios da Santa Casa, depois de aguardar uns 40 minutos, ela foi para triagem. Quando falei que ela tinha IPE, a enfermeira sentenciou na hora: “Não estamos atendendo gente com IPE na emergência”. E a moça sugeriu que fôssemos no Pronto Socorro Cruz Azul, é onde ela leva a própria mãe, segurada do IPE. Desbaratinadas, minha tia e eu, sem saber o que fazer, fomos para o Cruz Azul. Adivinha a resposta? Atendiam pelo IPE, mas não faziam exames clínicos de sangue, que era o que minha tia precisava.
Para encurtar a história, fiquei sabendo que nem o Hospital da PUCRS está atendendo na emergência pelo IPE. Que o plano de saúde do governo do Estado está vivendo uma enorme crise, talvez nunca vista na sua história. Daí, vem algumas perguntas. Se temos um governo que vendeu as companhias de água, de energia elétrica, está na cara que quer se livrar de seu sistema de saúde. E quem vai acabar assumindo as demandas será o SUS… Só que essa conta quem já está pagando somos nós – inclusive eu que não sou funcionária pública, nem tenho IPE.
Com o aumento da longevidade, com a maior fragilidade das pessoas, com o contexto climático mais desafiador, quem está pensando nas consequências dessa necropolítica neoliberal, onde o Deus Dinheiro está acima de tudo? Ouve-se tanto que precisa reconstruir o Rio Grande, por que o governo estadual não se preocupa em fortalecer o atendimento a quem durante toda vida trabalhou pelo próprio Estado? O que está por trás dessa desvalorização do funcionalismo público, se apenas o Estado e o Município podem tomar medidas locais para se adaptar e mitigar os efeitos (inclusive na saúde pública) das mudanças climáticas?
Já vimos meses atrás o significado da redução drástica de técnicos do quadro da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre no combate à dengue e outras pragas disseminadas por mosquitos. Antes ninguém morria de dengue. Nas duas últimas semanas foram 15 casos confirmados, em 12 bairros. Até o período analisado, a Capital registrou dez óbitos por dengue.
Todos os bairros da cidade registraram casos de dengue neste ano. Entre as vítimas mais frequentes, jovens entre 21 e 30 anos. Vacina disponível para quem tem entre 10 e 14 anos em Porto Alegre.
Com o clima bagunçado, outras “perebas” deverão aparecer. Não é minha intenção simplesmente colocar fogo no parquinho e sair. É só para nos darmos por conta que o contexto é muito além de reerguer empresas e dar mais subsídios para agricultura.
Um novo estudo descobriu que alguns fungos estão evoluindo para se tornarem capazes de infectar humanos, e essa evolução pode estar relacionada à mudança climática. “O perigo e a importância de fungos têm sido seriamente subestimados”, escreveram os autores no estudo publicado na revista Nature Microbiology, em meados de junho.
Enquanto escrevo esse texto, continuo me sentindo esquisita, com sintomas que evidenciam que preciso parar, me reestabelecer. Aproveito esse texto também para justificar por que não tive condições de enviar artigo novo na semana passada. É momento de dar um pause. Como sou humana (às vezes, o sistema e nós mesmas esquecemos disso), tem sido duro também se sentir doente e se deparar na rua com lixo espalhado, pedaços de móveis, eletrodomésticos, centenas de pessoas em situação de rua deitadas nas calçadas, gente pedindo ajuda de todos os tipos.
Respiremos fundo, precisamos manter a vibração alta, ter esperança, rezar. Vai passar. Mas se tivermos consciência de que não estamos sozinhos nessa embarcação, pode ser que mais gente se mobilize para nos adaptarmos a esse momento do processo “civilizatório”. Leiam, escutem o que diz Ailton Krenak. Essa aqui é ótima, em uma conversa com José Eli da Veiga. Precisamos demais aprender com a ancestralidade.
Mais textos de Sílvia Marcuzzo: Clique Aqui.
Texto originalmente publicado na SLER