Mesmo que meu corpo nunca tenha ido ao Continente gelado, minha mente e a imaginação já foram algumas vezes para lá. Lei e escrevo sobre a Antártica há muito tempo
Na quinta, dia 10 de outubro, foi lançado em São Leopoldo o livro Expedições Antárticas, com fotos incríveis do biólogo Cesar Rodrigo dos Santos. Tive o privilégio de fazer os textos que acompanham a abertura de cada capítulo da obra. O livro conta com uma edição luxuosa em capa dura e foi possível graças ao empenho da Simples Assim, uma empresa gaúcha, com sede em Novo Hamburgo, que apresentou o projeto em um edital da Lei Rouanet, do Ministério da Cultura. O evento marca a reabertura do Museu do Rio dos Sinos, que ficou fechado após as enchentes de maio. Também estará disponível, de 10 a 30 de outubro, uma exposição gratuita com uma seleção de fotos do livro. Todas as imagens contam com um QR code que direciona para a audiodescrição da obra.
O projeto foi construído por uma equipe multidisciplinar. Para aproveitar o ensejo, o livro é só a ponta do iceberg do que a proposta engloba: estão sendo desenvolvidas atividades pedagógicas (confira no site do projeto), palestras, entre outras iniciativas de educação ambiental. Também está disponível, até 30 de outubro, uma exposição gratuita com uma seleção de fotos. Todas as imagens contam com um QR code que direciona para a audiodescrição das imagens.
Escrevi muito mais do que foi apresentado na obra. O papel tem espaço limitado e o Cesar conta episódios de tirar o fôlego. Fora que há ângulos que explicitam os vários lados do contexto neoliberal em que estamos mergulhados. Sem falar nos resquícios de um governo que desprezou a pesquisa científica que merecem ser desvelados. São peculiaridades sobre a construção dessa obra que, espero, impactem corações e mentes de várias tribos.
Entre 2002 e 2017, Cesar viajou em navios de apoio à pesquisa e também em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB). Na Antártica, permaneceu em acampamentos e na Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), onde acompanhou de perto o incêndio que provocou a morte de amigos e prejuízos incalculáveis para a Ciência. Ele e os demais pesquisadores perderam tudo o que tinham naquela ocasião. Os instrumentos e materiais de pesquisa ainda foram reembolsados, mas os pertences pessoais e tudo que tinham guardado não. Ele chegou a embargar a voz ao me contar sobre como foi a decolagem de helicóptero, vendo a fumaça ao longe ao deixar a Estação.
Cesar, um bioindicador, das paisagens no gelo às rotas enfumaçadas
Para começar, o próprio autor é um bioindicador do momento em que vivemos. Com uma experiência ímpar, biólogo especialista em aves (ele também é taxidermista) e mestre, ele foi demitido da Unisinos em 2019. A universidade jesuíta terminou com seus programas de pós-graduação alguns anos atrás (adoraria saber o que sentiria o Padre Balduíno Rambo numa hora dessas).
Para sobreviver, Cesar trabalhou como motorista de aplicativo e depois ingressou como caminhoneiro em uma empresa de transporte de cargas que presta serviços para a indústria de tratores e de derivados de petróleo. Até hoje, pega a estrada com frequência, principalmente para São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ele me disse que ganha mais com essa atividade do que seus colegas que seguem pesquisando, fazendo pós-doutorado em alguma instituição.
Antes de bote, agora de bicicleta
Quem já foi 15 vezes em missões para ambientes inóspitos da Antártica não gosta mesmo de ficar parado. Hoje ele leva a máquina fotográfica nas suas andanças. E, sempre que pode, continua a registrar aves. Comprou uma bicicleta e a leva junto no caminhão para conseguir se deslocar com agilidade para locais onde a avifauna transita. Posta fotos no Wikiaves. E segue integrando o Clube de Observadores de Aves de Porto Alegre, o COAPOA.
Ele capturou cenas que só quem é pesquisador, com autorização para pegar na mão, conferir detalhes, anilhar, consegue registrar. As imagens traduzem a intimidade que ele mantém com a fauna. Na prática, pode nem sempre ser algo tão prazeroso quanto parece. Ficar horas nos arredores de bandos de pinguins significa também ter um olfato resiliente. O cheiro não é nada agradável.
Continente gelado gera laços
Perdi as contas do número de vezes em que eu e Cesar trocamos áudios e conversamos pelo celular no ano passado. Só fui conhecê-lo pessoalmente depois dos textos quase prontos. A experiência de ter feito esse trabalho, de ter viajado por tabela ouvindo suas histórias, me despertou inquietações. Depois de longas horas de papo, saía empolgada, imaginando as situações que ele descrevera. Detalhes de ocasiões como a amizade entre pessoas de diferentes culturas (lá todo mundo precisa e deve se ajudar), o sumiço de um salame no acampamento (a comida era meticulosamente planejada para ser dividida), a resiliência exigida, onde todos precisam zelar pelo coletivo, são alguns dos enredos que não couberam nas páginas, mas que renderiam outra publicação.
Mesmo que meu corpo nunca tenha ido ao Continente gelado, minha mente e a imaginação já foram algumas vezes para lá. Venho lendo e escrevendo sobre a Antártica desde o século passado. Lembro que fiz uma matéria para o jornal impresso Folha do Meio Ambiente nos anos 90 sobre a Plataforma de Larsen, onde o climatologista e professor da UFRGS Jefferson Cardia Simões me emprestou um disquete com o mapa da região mostrando o derretimento da área. De lá pra cá, os ambientes estão cada vez mais expostos ao aumento da temperatura global, isso significa que estão mais verdes.
O continente vem demonstrando há décadas, muito antes dos demais, o impacto do aumento das emissões de gases de efeito estufa (GEEs) na atmosfera. Já perdi as contas de quantas entrevistas fiz com o pessoal do Centro Polar e Climático da UFRGS. Aliás, esse ano, os pesquisadores voltarão para conferir os dados coletados pela base instalada lá.
Nessa teia da vida, onde tudo está interligado, o que podemos concluir ou conectar dessa trajetória de um pesquisador que virou transportador de cargas? Triste saber que um cara com esse potencial, com tanto saber, não está atuando na educação ou contribuindo para o avanço da Ciência. Mas, se analisarmos por outros prismas, só o fato dele estar aproveitando seu conhecimento e sua prática para dar palestras, divulgando imagens e espalhando seu repertório em escolas já é um roteiro de como transformar o limão em limonada. Saber como prosseguir superando as dificuldades, os entraves, que nos fazem muitas vezes achar que as coisas não têm jeito, é apenas um dos lados da trajetória do Cesar. A maior parte da tiragem do livro será doada para instituições de ensino e divulgação. Se você se interessou, pode adquirir a obra.
Também vale honrar quem acreditou na parceria: patrocínio master da Ventos do Sul, patrocínio da TFL do Brasil, Tramonto Jeep, Baldo, Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul – BRDE, copatrocínio da Courovale, Halo Origem e Calçados Karyby, e apoio da Marinha do Brasil.
Para tornar o projeto acessível e inclusivo a todos os públicos, o livro também está disponível no formato EPUB, para pessoas cegas ou com baixa visão. Basta enviar um e-mail para contato@simplesassim.art.br, solicitando o formato. Também é possível adquirir a obra através do site oficial do projeto.
Foto da Capa: Cesar Rodrigo dos Santos / Divulgação Todos os textos de Sílvia Marcuzzo estão AQUI. Texto originalmente publicado na Sler