Desconfio que a situação seja em parte responsável por tanto sofrimento psíquico
Se por um lado o sistema em que estamos mergulhados nos empurra para o individualismo, por outro, só teremos chance de sobreviver se tivermos atitudes em várias escalas voltadas ao coletivo. Afinal, por que não é civilizado viver em meio a poluição? Por que é perigoso atravessar o sinal vermelho?
Um sentimento incômodo sobre o quanto estamos culturalmente sendo cooptados para que as novas gerações sejam egoístas me pegou de jeito. Uma situação que estou atravessando com meu filho adolescente. Uma empresa de viagens focada no público juvenil divulgou, entre a gurizada que está no segundo ano, uma excursão de uma semana para Porto Seguro. Seria tipo uma comemoração no meio do ano que vem por estarem concluindo o ensino médio. Ou seja, um ano antes, os caras provocam a vontade (até não aguentar mais – quem lembra da propaganda do refrigerante Teem?) e, ainda, destacam promoters para convencer os colegas e seus pais que será uma viagem imperdível.
E realmente deverá ser. Pois eu fiz uma viagem de final de curso inesquecível, quando terminei o Magistério. Só que ao contrário do esquema de hoje, que já se apresenta tudo pronto – onde os pais entrarem com a grana – naquele tempo, o sabor da conquista para realizar a excursão foi sendo degustado ao longo dos três anos de curso. Ou seja, esse serviço é um bom negócio. Hoje é raro encontrar em alguma escola alunos empenhados para concluir um projeto desse tipo. Mais: é difícil encontrar jovens se dedicando a unir forças para atingir objetivos que visem o coletivo.
O processo de construção e concretização de uma viagem
Na Cachoeira do Sul da década de 80, minha turma queria que todas tivessem a mesma oportunidade. Boa parte não conhecia o mar, muito menos o de Santa Catarina. Fui uma das organizadoras, na verdade, a tesoureira da excursão. Nossa turma, da Escola Estadual João Neves da Fontoura, abusou da criatividade e mostrou a força, garra e engajamento para conseguir dinheiro para passar uma semana em Florianópolis no final do curso. Uma aventura inimaginável para aqueles tempos. Um ônibus só de mulheres, menores de idade, com três professoras junto. Desfrutamos momentos indescritíveis nas paradisíacas praias da Ilha da Magia.
A maior parte das colegas não tinha condições de bancar a trip. A configuração da energia da minha turma era impressionante. Aprendemos a virar gente juntas. Tinha saído de um colégio particular e me deparei com uma realidade que me abriu os olhos para a vida. Muitas colegas moravam na periferia. Já nas primeiras semanas de aula, providenciamos um bolo de aniversário para uma colega que faria 15 anos. Se não fossemos nós, ela não teria assoprado as velinhas.
Naquele tempo, iniciativas pela coletividade eram comuns. E hoje, vejo o quanto isso faz falta para a juventude. Toda turma pegou junto para obter o recurso necessário para empreitada. Mesmo as colegas que não iriam junto porque a educação rígida dos pais não permitia, colaboraram. Entre as estratégias para juntar o dinheiro estavam a venda de merenda durante o recreio. Cada dia uma trazia de casa um bolo, um sanduiche, algum tipo de lanche que era vendido entre nós e para outras turmas. Também montamos uma banca na festa junina da escola com um suporte de basquete e quem fizesse a cesta levava alguma coisa, que não lembro bem o que era. Fizemos carreteiro, rifas, enfim, nos mobilizamos de várias formas e não só conseguimos a grana, como ainda sobrou.
Talvez pelo fato de ter vivido momentos marcantes com conquistas coletivas – em um dos corais que cantei em Cachoeira, também fizemos muitas peripécias para conseguir dinheiro para uma excursão; participei de times de vôlei (geralmente ficava no banco), mas ia nas viagens; na faculdade, nossa chapa venceu as eleições e provocamos um choque de gestão no Centro Acadêmico, sinto falta de ver mais iniciativas em prol do bem comum. Ainda que faça parte do coletivo POA Inquieta, sinto muita falta de integrar grupos com gente que pega junto para deixar o contexto melhor.
Na década de 80 as famílias eram numerosas. Tudo era dividido, negociado. E taí uma das coisas que precisamos aprender com as comunidades periféricas. Somos seres sociais e precisamos uns dos outros. Na minha infância, quem tinha um telefone na rua, chamava os vizinhos para atender as ligações. Na adolescência, quem tinha um ‘três em um’ gravava as fitas para os amigos. Hoje, grande parte dos filhos são únicos. E cada pessoa da casa tem seu próprio telefone. E ninguém precisa gravar nada. Está tudo na web.
Desconfio que esse individualismo absurdo que vivemos também é um dos responsáveis por tanto sofrimento psíquico. Cada dia descubro mais gente que atravessa desafios psiquiátricos. A falta de atenção, a depressão, a ansiedade hoje parecem ser muito mais comuns do que nos tempos que dividíamos as dores e alegrias com as pessoas que convivíamos. Isso sem falar da solidão. Convivo com pessoas sozinhas e sei bem o peso do que isso significa quando elas percebem que “caixão não tem pernas”. Os lugares onde as pessoas se ajudam e vivem em comunidade são muito mais leves e felizes.
Só que neste momento do Antropoceno, a nossa única chance de sobrevivermos é justamente colaborarmos com o coletivo. O planeta é uma bola que rebola no céu, já entoou a Palavra Cantada. É impossível todos terem o mesmo padrão de vida de um norte-americano. O impacto desse esquema neoliberal – do tudo por dinheiro, qualquer narrativa por lucro e poder – estampado nas redes sociais através de filtros e greewashing já é percebido por toda parte.
O estímulo à civilidade, às práticas em favor das dimensões da sustentabilidade não são reguladas pelo mercado. Elas precisam vir de dentro para fora. De casa, da escola para a sociedade. E talvez esse individualismo seja só uma ponta do iceberg de uma dimensão sociopolítica do sofrimento coletivo. Por que falta entusiasmo, tesão em querer que todos se deem bem? Será que isso é só impressão minha?
Foto da Capa: Fernando Frazão / Agência Brasil