A prefeitura tem planos de conceder a iniciativa privada o Parque Marinha, um dos mais amados de Porto Alegre
Talvez não passe pela cabeça de muita gente os porquês de se ter um parque em determinado lugar, o motivo do traçado de uma rua, de avenidas ou até mesmo da preservação de edificações antigas. O que define a identidade de um lugar é um conjunto de elementos, que em boa parte das vezes se manteve porque houve movimentos pela sua conservação.
Em Porto Alegre, se hoje temos árvores, praças e parques é porque houve uma mobilização expressiva de ambientalistas e de técnicos, servidores do município que batalharam para que as áreas verdes fossem criadas e mantidas. E há muitas razões para defendermos o verde entre nós (com a benção do Augusto Carneiro e José Lutzenberger). Seja pelo bem estar, pela promoção da saúde, até para mitigar os efeitos da crise climática. No entanto, isso não basta para que a municipalidade se ocupe com o cuidado dessas áreas.
Para quem caminha pela orla, pelas ruas e procura estar atento é preocupante constatar o que vem acontecendo com a cidade. Nos últimos anos, a capital gaúcha vem adotando medidas que transferem para o setor privado justamente o que compete a ela fazer. Parques e equipamentos públicos, leia-se árvores, praças, se não são adotadas, concedidas ou cuidadas por alguém, sofrem com a ação do tempo ou estão se deteriorando. Em tempos de aumento da frequência de eventos extremos então, as árvores deveriam receber uma atenção especial. No entanto o que se vê são apenas podas para não atrapalhar a fiação, enquanto as ervas de passarinho e outros problemas fitossanitários são comuns.
As novas paradas de ônibus, por exemplo, foram construídas em troca de termos inúmeras telas, telões com animações de propaganda. Integrantes da atual gestão chegaram a afirmar que parques não dão lucro. Com base nesse contexto e também porque circulo bastante na parte da orla concedida e a que se pretende transformar, tenho procurado entender melhor sobre esse tema.
O urbanista Leonardo Márquez, do coletivo TransLAB.URB acredita que uma administração que preze pela qualidade de vida jamais deveria se preocupar com um parque dar lucro, pois o parque foi pensado para outros fins, como contemplação, contato com a natureza, com a fauna, a flora, a paisagem, local para prática de exercícios. Quando se valoriza apenas o lado econômico, onde cada metro quadrado vale dinheiro para gerar uma dinâmica para o consumo, a sociedade sai perdendo. Em vez de se dar oportunidade para que os pequenos negócios prosperem só empresários com maior capital (ou amigos de quem está no poder) poderão competir para estar naquele lugar. Sem falar que é muito mais apropriada a presença de ambulantes que não interferem ou impactam diretamente o ambiente.
Outra questão apontada por Leonardo é o quanto a atual administração tem pouco se empenhado na manutenção em geral de parques, como bancos, lixeiras, mobiliário. Isso acaba deixando os espaços públicos com aspecto de “largado”, “abandonado”, que é o argumento perfeito pra fazer a opinião pública concordar com a privatização: sucatear pra privatizar.
Devido aos fatos envolvendo o Parque Harmonia e outras concessões é de bom tom que a sociedade acompanhe de perto o processo de concessão do Parque Marinha do Brasil.
Descortinando a história do Parque Marinha do Brasil
No sábado, dia 15 de julho, participei de uma caminhada no Parque Marinha do Brasil, em Porto Alegre, com um dos arquitetos que projetou a área na década de 70. O arquiteto Ivan Mizoguchi revelou várias histórias que merecem ser conhecidas por todos aqueles que sabem o valor das áreas verdes em ambientes urbanos.
Ele contou que o Parque Marinha foi projetado na área aterrada do Guaíba em uma época que era estranho encontrar alguém correndo, caminhando de calção ou abrigo na rua ou em parques. Sei de gente que corria nessa época e que chegou a ouvir: “pega ladrão”!. Foi um tal de doutor “Cooper”, daí vem o nome que popularizou a corrida, que disseminou a importância de fazer exercícios, como uma estratégia para se manter em forma e com saúde. Com base nesse conceito, de se propor locais para se exercitar, praticar esportes, caminhar que o Marinha foi desenhado. Era novidade naquela época ter um parque de grandes dimensões dentro a cidade. Até hoje, o Marinha é o maior parque da capital, com mais de 70 hectares.
Mizoguchi foi um dos vencedores do concurso para projetar o parque juntamente com outro arquiteto, Rogério Malinsky. Os dois hoje são professores aposentados da Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Na caminhada em volta do parque, ele recordou como era o terreno na época. Um aterro carregado de areia que recebia entulhos por todos os lados. Próximo ao Guaíba, havia uma barreira de uns três metros de altura, ele observou, como uma medida de contenção de cheias.
O professor, integrante do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), destaca que o projeto previa um caminho até o Guaíba desde a sua concepção. Inclusive ele e Malinsky reivindicaram essa conexão junto ao escritório de Jaime Lerner quando o planejamento do trecho 3 da orla estava em elaboração. Isso pode ser conferido na sequência do monumento ao canhão até a orla, entre as quadras esportivas. Depois que se atravessa a avenida, há uma escadaria em curvas com borda de ferro e um paisagismo que denota formas volumosas, onde a grama verde contrasta com o caminho cinza.
O Marinha conta dois grandes eixos: o eixo aquático, que dispõe de um sistema de lagos e canais (que serviam de bacia de contenção) que não tinham e não têm ligação com o Guaíba e o eixo verde, cercado por um corredor de grandes árvores. Mizoguchi lembra que a pista de skate foi projetada por reivindicação de skatistas em 1976.
E a paisagem daquele aterro de outrora foi se transformando ao longo do tempo. Todas as árvores do parque foram plantadas. O velódromo foi construído depois, assim como a instalação de várias obras de arte, grandes esculturas que integraram edições da Bienal do Mercosul. Há obras de artistas de projeção internacional espalhadas pelo parque.
O Parque Marinha, embora não seja um patrimônio tombado como é a Redenção, requer uma série de cuidados que têm sido negligenciados. E para quem é atento a sua relevância, isso é motivo de preocupação. Especialmente porque ele está no rol de áreas que podem ser concedidas à iniciativa privada.
Por um parque em harmonia
Como o Parque Harmonia está passando por obras que o descaracterizaram de sua ideia de “estância”, movimentos da cidade como o Atua POA, o Preserva Redenção, a Agapan, o Preserva Marinha, o Ingá, o IAB, o TransLAB.URB, o IAB/RS, o FRGP1- Fórum da Região Gestão de Planejamento 1 do CMDUA e o POA Inquieta, do qual faço parte, estão atentos ao que pode acontecer ao Marinha.
A promotora de justiça Annelise Steigleder, do Ministério Público Estadual, me informou que vem pedindo documentos à empresa concessionária do Harmonia e do trecho 1 da orla e à prefeitura para saber se o que está sendo feito está dentro da lei. Segundo ela, o regime jurídico de parques urbanos não contempla a necessidade de plano de manejo, como parques estaduais. Nesse tipo de unidade de conservação, são estabelecidas regras de funcionamento conforme a ocorrência de espécies de flora de da fauna. Mesmo que os parques tenham fauna abundante – o que constato com frequência em minhas caminhadas – essas espécies não estão legalmente protegidas. No dia 2 de agosto terá nova reunião com o MP, prefeitura e concessionária.
Foto da Capa: PMPA