Neorurais, a busca por qualidade de vida e autonomia

Os impactos de viver no agito das grandes cidades tem feito muita gente se mudar para zonas rurais

Quem sente na pele o que é o dia a dia de morar em cidades grande já deve ter se perguntado como deve ser viver num lugar sem congestionamentos e caos urbano. E, quem vai além, problematiza os significados de estar completamente dependente das decisões de outros, e já deve ter se indagado: como será morar num lugar com melhor qualidade de vida?

Confesso que, de uns tempos para cá, venho me perguntando até que ponto vale estar em um local impactado por tantos lados. É o barulho da oficina, da lava-jato, dos veículos, das surdinas. É o cheiro de tinta forte de algum vizinho, a poeira e do material particulado invisível, que acaba provocando alergias. Talvez o pior seja a densidade de uns vivendo tão perto, as filas para qualquer coisa.

Também é terrível é se deparar com frequência com as faces da nossa desigualdade abissal. Gente pedindo ajuda, levantando cartazes, transitando entre os carros nas sinaleiras. Centenas de pessoas em situação de rua. Catadores procurando algo vendável nos contêineres. Essa lista é singela, perto do que é estar no meio de tantos estragos provocados por eventos climáticos extremos. Viver em cidades como Porto Alegre tem sido um desafio e tanto.

Aqui em casa, digo, no nosso apartamento, fomos privilegiadíssimos. Como um meme que circulou nas redes: fizemos parte da Porto Alegre Premium. Não ficamos sem energia, não faltou água e a internet não foi abalada depois da mega ventania e chuvarada do dia 16 de janeiro. Nosso prédio sofreu pouquíssima avaria, assim como naquele episódio marcante de 2016, onde apenas uma faixa da cidade foi abalada.

Aqui em casa entrou água, mas não foi nada perto do que outras pessoas até hoje estão passando. Não posso reclamar. Passado mais de uma semana depois, tem gente sem água e sem luz até hoje.

Morando em um apartamento ou mesmo casa em cidade, não está ao nosso alcance a resolução dos problemas que acontecem no próprio município. A não ser na hora de votar, é claro. Depois de rastros de destruição como o que aconteceu, é a companhia de energia é que precisa dar jeito. A água potável só sairá da torneira se for disponibilizada pelo departamento/empresa responsável. E tudo precisa ser administrado e resolvido pela prefeitura, que é a gestora, a síndica do pedaço.

Na cidade, somos dependentes dos outros

Nas cidades, compramos quase tudo no supermercado. O que comemos, na maior parte das vezes, desconhecemos completamente a origem, se tem muito agrotóxico, se houve exploração de trabalhadores ou mesmo se a indústria está preocupada em onde vai para o resíduo que está gerando. E o ar, então, sem monitoramento, nem temos ideia do que pode estar entrando nos nossos pulmões. Ah, não posso esquecer de algo que incomoda boa parte da população: a insegurança, o viver cercado de grades, portões, cadeados, cercas elétricas, câmeras de segurança.

Esses são alguns argumentos que ouvi de pessoas que optaram por deixar grandes centros para viver em áreas rurais em um encontro que participei no sábado, dia 20, em Morro Reuter. É claro que sair da comodidade de ter serviços e comércio variado mais perto tem muitos desafios.

Como morei no interior, cresci em uma casa com um pátio grande com horta variadíssima e muitas frutíferas, saquei o tanto de vantagem que é viver em meio a natureza. Beber água fresca direto da nascente. Respirar um ar puro (isso se a vizinhança não usar algum veneno, né). Mas, principalmente, estar inserido numa comunidade onde as pessoas se ajudam e colaboram entre si. A família do meu pai, do distrito de Vale Vêneto, em São João do Polêsine, sabe na prática o que é viver assim.

Do agito da cidade para a tranquilidade do campo

Márcia Maria da Silva, pernambucana, 44 anos, se mudou com o marido e três filhos para uma vida bem diferente e tranquila da que tinha. E foi por pura opção mesmo. Deixou a vida em Buenos Aires, com o marido e três filhos, hoje com 14, 10 e 7 anos. Viajou com a família e percorreu municípios do interior de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, até que escolheu por morar em Morro Reuter.

A reunião, que contou com a condução de Eurico Vianna, consultor para quem está querendo fazer essa transição de modo de viver, foi na casa de Márcia. Ela faz pães, pizzas, foccacias de longa fermentação natural com farinha de trigo orgânica (@SimBiotica). Ela tinha problemas de saúde que desapareceram depois que saiu do fervo da capital argentina.

Ela e outros participantes da reunião podem ser chamados de neorurais. Vale conferir a dissertação da Bruna Karpinski sobre o assunto.

Vianna destacou alguns pontos importantes a serem considerados. Quem quiser viver no campo não precisa, necessariamente, focar na agricultura. Hoje há muitas atividades que podem ser desenvolvidas. As dimensões da sustentabilidade precisam estar equilibradas. Só em viver longe da grande oferta do consumo desenfreado de supérfluos, já é um avanço.

Ele citou exemplos de relações de dádiva, onde uma rede de confiança é estabelecida entre os vizinhos e amigos. Isso é uma construção diária. Trocas, empatia e viver como uma grande família. E eu sei o que é isso: cresci distribuindo frutas entre os vizinhos. O excedente de uma produção era compartilhado, quando o meu pai cuidava da horta em Cachoeira. Até hoje lembro do pão de casa da Dona Nair, onde o perfume promovia desejos na vizinhança. Quantas vezes ela me deu um pedaço!

Uma das coisas que mais me chamou a atenção é que quando há um problema coletivo, como a queda de uma árvore, de um poste ou alguém atola na estrada, a comunidade se empenha, faz um mutirão, todos se ajudam. Muito diferente de quem mora em uma cidade grande e nem sabe quem é o vizinho de porta. Ela me contou que é comum o pessoal fazer mutirões para deixar as praças e a cidade mais bonita. Que o senso de colaboração é forte e que ela se sente mais segura hoje que em uma cidade grande.

Tudo que ouvi nesse encontro e também convivendo com conhecidos que optaram por sair do agito, me remeteram a muitas indagações. A estrada de terra para chegar até a casa da Márcia era boa, porém sem adequada sinalização para quem nunca transitou por ali. Ou seja, cada lugar tem seus códigos e meios para se chegar ao destino final. Tudo depende de como encaramos o caminho para decifrá-los.

Esse estilo de vida não é para qualquer um. Primeiro, aconselha Vianna, a propriedade e as dívidas devem estar quitadas. É preciso saber consertar, arrumar, ter um senso de que tudo está nas nossas mãos. Basta ter energia, vontade e muita criatividade. Desde cortar lenha, ter muita disposição para cozinhar e saber que a autonomia tem um preço. Ser dependente das companhias de serviço de energia, de água e de internet também tem seu preço. E aí é que a equação fica mais complicada para resolver, quando o poder decisão não é só técnico. Está nas mãos de políticos que parecem estar mais preocupados em vencer as próximas eleições e se manterem no poder.

Foto da Capa: Horta suspensa, acervo da Autora


Texto originalmente publicado na SLER

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