O iceberg da crise da falta de cuidado

Como estamos distantes de valores de uma humanidade que nos eleve enquanto seres humanos.

Neste caos onde estamos mergulhados, sugiro compararmos nossa situação a um iceberg. Na ponta, muito lixo, cenários de destruição, devastação de lavouras, casas destroçadas, farrapos que tentam se entender em meio a narrativas divulgadas pelas telas e ondas de rádio.

A crise climática é o resultado de uma série de fatores que estão trazendo problemas há tempo, em grande parte das vezes, não queremos enxergar. Esse sistema capitalista, do lucro a qualquer custo, tem dado muitas provas que estamos cada vez mais entorpecidos. Como nosso subconsciente, o que está abaixo do mar, recusamos a aceitar. A mudança talvez exija demais de uma sociedade que foi criada em um esquema linear, que nunca se preocupou com a circularidade do funcionamento da natureza.

Para dentro do mar, nas partes mais internas desse iceberg, estão guardados nosso lado demens, o oposto do sapiens. Aquele que tem vindo à tona de formas diversas nesse momento em que tantos perderam tudo, ou quase tudo. O nosso lado mais instintivo, menos civilizado. Só para ilustrar um pouco as feições desses ângulos, quase sempre obscuros, cito alguns exemplos.

Sabe aquela vizinha que chegou há pouco da praia, nem quis tomar conhecimento do que aconteceu no Rio Grande do Sul, na Região Metropolitana, no prédio e está indignada que ainda não tem água do prédio e quer contratar um caminhão pipa para encher a caixa d’água? E o cara, que junto com outros, achou uma baita oportunidade aproveitar que as pessoas saíram de casa às pressas, e levou tudo que podia das casas atingidas pela cheia? Ah, e tem também o sujeito que está aproveitando para conquistar eleitores, distribuindo cestas básicas em zonas carentes de tudo, de atenção, de energia, de água, de cuidado. Detalhe: as cestas foram enviadas por doadores de todo Brasil, mas ele aproveita para faturar politicamente.

São faces de uma crise de cuidado, onde se pode observar em diferentes instâncias o quanto andamos desatentos aos sinais da natureza. Como estamos distantes de valores de uma humanidade que nos eleve enquanto seres humanos.

Nosso lado que se acha super sapiens, entendeu que jamais se precisaria deixar a fechadura com a chave funcionando no portão de entrada, porque o mecanismo de entrada tinha mudado para eletrônico. A modernidade hoje manda usar tags. Resultado, sem miolo, não se tem como fechar a porta. Por que será que nosso lado sapiens, nunca desconfiou que uma administração não se preocuparia com a manutenção de sistemas de proteção contra cheias?

A nossa falta de cuidado também está enraizada, ou melhor, institucionalizada. As instâncias que deveriam zelar pelo bem comum, simplesmente ignoram os conselhos da ciência, de quem sabe o que está falando. E, mais uma vez, o cuidado é deixado de lado. Ou melhor, é empurrado para debaixo do tapete. Afinal, cuidado requer consciência, escuta com os ouvidos e cabeça abertos para compreender que nem sempre se tem razão.

O que é mesmo quem insiste no erro, apesar das evidências de que está errado? E quem deve agir num momento em que representantes de quem deveria EXECUTAR ações pelo bem da coletividade considera apenas o que os seus amigos, aqueles que lhe deram suporte para a sua campanha? Eu, confesso, me sinto descuidada, abandonada. E olha que eu não poderia me queixar, diante de tantos que perderam memória, dignidade, bens, familiares nesse caldo de absurdos que essa enchente tem trazido.

O cuidado é algo imperativo, sempre foi. Mas hoje, mais do que nunca. Para cuidar, precisamos nos cuidar, saber onde estamos pisando. Mas num solo de areia movediça, onde poucos se preocupam em edificar um trajeto seguro, onde devemos nos apoiar?

Para muitos, a fé, a crença, a amizade, a esperança são os caminhos. Diante de tudo que estamos passando, talvez seja a única opção. Quando olho da minha ilha (bolha), o iceberg à frente, percebo que por todos os lados o quanto está difícil encarar, nadar ou escapar de algum jeito. O que me resta é lamber minhas feridas. Providenciar curativos, com os panos que restam. Respirar fundo e levantar a hipótese: será que esse iceberg vai derreter um dia?

 

Foto da Capa: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Texto originalmente publicado na SLER

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