Existem formas de considerar os fluxos que nos levam a repensar como podemos encarar a transição civilizatória
Não é novidade que vivemos em uma era de transição civilizatória. Mas o que significa na prática essa mudança que tem alterado relacionamentos, bombardeado certezas e feito muita gente ficar perdida, não sabendo para onde olhar, ir ou canalizar energia? Onde é melhor investir, como as organizações podem encontrar soluções para tantas equações jamais vividas anteriormente?
Há muitas perguntas que rondam a cabeça dos seres pensantes. Especialmente daqueles que conseguem não serem hipnotizados pelas telas. Tenho procurado conectar situações de dimensões distintas da sustentabilidade. Depois que conheci a Fluxonomia 4D (de quatro dimensões), metodologia desenvolvida pela futurista Lala Deheinzelin para sintetizar que aspectos culturais, ambientais, sociais e multimoedas (transacionais) se interrelacionam em qualquer mudança, entendi que o nosso contexto deve começar a ser compreendido pela nossa cultura.
Quando conheci a Fluxonomia, me encantei porque essa forma de explicar a sustentabilidade amplia o conceito que foi difundido com o triple botton line, o famoso tripé da sustentabilidade, com dimensões ambiental, social e econômica. Também é uma concepção diferente do ESG, que é a sigla em inglês para Ambiental, Social e Governança. Ela percebe e propõe uma reflexão para questões ignoradas por essas concepções.
Então, o que a nossa cultura hoje nos revela?
Tudo começa com a dimensão cultural
A dimensão cultural envolve o intangível, os valores, a forma de linguagem. Tem tudo a ver com o propósito, o que nos move para o mundo. E hoje, as novas gerações têm ambições diferentes das do século passado. Não há mais aquele desejo de se ter um carro, a carreira hoje não é mais linear. E as famílias hoje são distintas, com diversidade, jeitos de se relacionar e morar, de se manter bem diferentes também. Mas há uma coisa comum entre todos, de todas as classes sociais. Todos precisam ter um celular ou um computador. Esses aparelhos são mais importantes que uma TV ou um rádio, por exemplo.
O que isso representa? O que é necessário para se ter um smartfone, além das mínimas condições para comprá-lo e mantê-lo? Vontade, arrisco! Eu convivo com pessoas que ainda estão com a cabeça, com o seu modus operandi no século passado. Ou seja, têm grana, condições, mas se negam a querer aprender como funciona o mundo web. É claro que isso cabe mais para pessoas com uma idade acima dos 50 e poucos. Mas elas existem e não podem ser ignoradas.
Esse cenário entre os mais analógicos e os digitais representa mais que uma lacuna, um canyon para várias coisas. Como transito entre esses diferentes ecossistemas, acredito que essa fronteira tecnológica tem vários lados que precisamos considerar nesse momento de agravamento de crise climática.
Assim, tive que abrir uma conta conjunta com minha tia, que se nega a usar um celular. Ela nunca teve e-mail e, para poder contar com determinados serviços, tive que assumir a administração de várias atividades, que hoje não utilizam mais correios. Uma delas foi agilizar a contratação de um pacote que funcionasse o telefone fixo.
E aí vale lembrar a máxima do Alvin Tofler: o analfabeto do século XXI não será aquele que não consegue ler e escrever, mas aquele que não consegue aprender, desaprender e reaprender.
Dimensão ambiental tem limites
Agora vamos pegar outro lado dessas multifaces da sustentabilidade: e para fazer todos esses aparelhos, essa grande demanda por celulares, precisamos de montanhas de recursos naturais! Energia, robôs e gente qualificada que pense em apps etc. Em outras palavras: é preciso ter muitos metais, plásticos etc. Esses insumos vêm da reciclagem? Exigem exploração de novas áreas? A extração considera o impacto ambiental e social onde ela ocorre? Enfim, cada vez mais esse momento exige que o consumidor se dê conta de onde vem o produto que compra.
Não dá mais para nos preocuparmos só com o momento da compra e do uso por alguns anos. Precisamos saber questionar e cobrar das indústrias, das lojas e também do poder público como será o gerenciamento dos resíduos gerados. É possível ele ser reaproveitado, reciclado ou melhor ainda: nem gerado? Pois o que compramos despretensiosamente pode virar um baita problema para o poder público e até para as próximas gerações. Ou seja, o que deveria ser responsabilidade do fabricante acaba virando um problema para todos. Afinal, nada se perde, tudo se transforma, como já advertiu Lavoisier há muitos anos. Aliás, você sabe para onde vão os resíduos que você gera?
Em um artigo na edição 171, do Le Monde Diplomatique, com data de 1º de outubro de 2021, o autor Guillaume Pitron aponta diversas fontes e muitos argumentos que nos levam a repensar o impacto da tecnologia nas nossas vidas sob o aspecto ambiental e planetário.
Confira esse trecho do artigo (já que na íntegra ele é só para assinantes)
“Desenvolvedores do Vale do Silício e fabricantes de grandes caminhões, a Comissão Europeia e a consultoria McKinsey, Joe Biden e Xi Jinping, os liberais britânicos e os verdes alemães: diante da emergência climática, uma Santa Aliança global foi forjada pelo bem do planeta em torno da convicção da necessidade de uma grande mudança do mundo on-line. “A tal ponto que se considera cada vez mais que não será possível controlar as mudanças climáticas sem recorrer maciçamente à tecnologia digital”, destaca a associação The Shift Project, que não compartilha desse ponto de vista.
1 Nasce um novo evangelho que promete a salvação por meio de cidades “inteligentes”, abarrotadas de sensores e veículos elétricos autônomos. E ele tem apóstolos eficazes, como a Global e-Sustainability Initiative (GeSI), um lobby corporativo estabelecido em Bruxelas, para o qual “as emissões evitadas com o uso de tecnologias de informação e comunicação são quase dez vezes maiores do que as geradas pela implantação dessas tecnologias”.
2 Mas pesquisadores independentes contestam a sinceridade dessas cifras, repetidas em toda parte, bem como a imparcialidade de seus autores. Para além dos esforços de “marketing verde” das companhias do setor e seus porta-vozes, qual é o impacto ambiental das ferramentas digitais? Essas novas redes de comunicação são compatíveis com a “transição ecológica”? Ao final de uma investigação que nos levou a dez países, eis a realidade: a poluição digital é um colosso e, inclusive, a que cresce com mais rapidez.
“Quando descobri os números relacionados a essa poluição, pensei comigo mesmo: ‘Como isso é possível?’”, recorda Françoise Berthoud, engenheira de pesquisa em computação. Os danos causados ao meio ambiente começam pelos bilhões de dispositivos (tablets, computadores, smartphones) que abrem as portas para a internet. Mas também decorrem dos dados que produzimos o tempo inteiro: transportadas, armazenadas e processadas em vastas infraestruturas que consomem recursos e energia, essas informações permitirão criar novos conteúdos digitais, para os quais necessitaremos de… mais dispositivos! Para realizar ações tão impalpáveis como enviar um e-mail pelo Gmail, uma mensagem pelo WhatsApp, um emoticon pelo Facebook, um vídeo pelo TikTok ou fotos de gatinhos pelo Snapchat, construímos, segundo o Greenpeace, uma infraestrutura que, em breve, “será provavelmente a maior coisa já feita pela humanidade”.
3 De tal forma, essas duas famílias de poluição se complementam e se retroalimentam.
Os números são reveladores: a indústria digital global consome tanta água, materiais e energia que sua pegada é três vezes maior que a de um país como a França ou o Reino Unido. As tecnologias digitais mobilizam hoje 10% da eletricidade produzida no mundo e seriam responsáveis por lançar quase 4% das emissões globais de CO2, quase o dobro do emitido por todo o setor de aviação civil mundial”.
Onde entra o lado social
Hoje virou moda falar em ESG (sigla para Environment, Social and Governance), sabemos que esse assunto é uma trajetória que sempre apresenta novas variáveis. Qualquer dimensão da sustentabilidade no nosso sistema de vida hoje pode trilhar caminhos diversos, que exigem uma busca contínua por melhorias. Sempre vamos impactar. Mas a pergunta é: de que forma é possível vivermos bem, com qualidade de vida, arte e afetos impactando positivamente?
Conforme o percurso da Fluxonomia, para o fluxo das coisas acontecerem, depois de ter partido da cultura, ter se materializado a partir do ambiental, depois vem a dimensão social, que tem um entendimento distinto do ESG. É nesse aspecto que as coisas podem acontecer, serem exponencializadas, ganharem o mundo. Parte da relação entre as pessoas, de trocas e do nível de alfabetização digital de cada um. E aí entra um ponto importantíssimo: as novas tecnologias estão obrigando as pessoas a se abrirem para o novo, para o aprendizado. Ou melhor, a desaprenderem, como profetizou Tofler. Dentro desse contexto, o mundo do trabalho está sendo transformado a passos galopantes.
Os avanços tecnológicos das telas em nossas vidas apresentam muitos lados bons, que agilizam expressivamente nossa vida. Na pandemia, foram decisivas as possibilidades oportunizadas pelas telas. Só que agora, sinto, nunca um olho no olho foi tão revigorante. Viajar e frequentar restaurantes, bares, sair pelas ruas então. A experiência, o toque, o sentir estão em alta. Mas isso é assunto para aprofundarmos outro dia.
Nesse momento histórico de transição civilizatória, não podemos esquecer que esse contexto digital precisa avançar em termos éticos. A serviço do que e de quem estão os algoritmos? Só do lucro? Quem é escravo das telas e analfabeto digital é muito mais suscetível à manipulação (estão aí o resultado das eleições em tantos países para comprovar). Conforme fontes, como o expert no tema Ronaldo Lemos, cada vez mais o Instagram e o Facebook irão se valer do algoritmo para conectar pessoas e empresas que não integram o nosso círculo de amigos.
Acredito que um dos maiores dilemas da nossa sustentabilidade hoje, além da crise climática planetária, é como costurar acordos, arcabouços jurídicos que garantam a evolução da civilidade nas redes sociais, nos pontos de contato que a web proporciona. E isso, sem dúvida, passa pela comunicação, por tantas e tantas formas hoje que temos de transmitir mensagens. A dimensão social contempla todas essas nuances.
Para a Flux, como chamam os adeptos desse sistema de interpretação da complexidade, é fundamental contemplar a alegria, a celebração, a empatia, gerar engajamento para que se consiga fazer girar a espiral. Aí entra também o poder da colaboração, do fazer junto, vislumbrando futuros desejáveis. Sim, pois se ficarmos só analisando o meio copo vazio, ou as desgraças que nos cercam, não teremos energia e vigor para superar as adversidades que nos acompanham.
Transações multimoedas e resultados
Além de termos que nos ligar sob os aspectos culturais, ambientais e sociais das nossas escolhas, por fim, a Fluxonomia remete que o próximo passo é o que se ganha com tudo isso, o resultado, o tangível. Imprescindível medir, acompanhar o processo para se saber dimensionar o produto, serviço, projeto final. É uma transação ganha-ganha-ganha, onde eu, o outro e o planeta ganham? É um resultado positivo para a humanidade eu manter determinado modus operandi cultural, retirando recursos da natureza e fazendo conexões entre as pessoas?
Acredito que cada vez mais, especialmente os mais jovens e os preocupados com as futuras gerações, vamos nos perguntar sobre os lados da sustentabilidade no momento das nossas escolhas. Tá certo que há muitas forças que puxam para outros lados, até porque aspectos da sustentabilidade incomodam quem considera principalmente o curto prazo, como boa parcela de políticos e comerciantes.
Para a Flux, é importante dar várias voltas nesse percurso da espiral, de partir do cultural, para o ambiental, social e transacional. Simplificando, pego o exemplo de uma planta: é preciso ter uma semente (ideia), plantar em uma terra boa (no ambiente), regá-la, cuidá-la para que dê flores, frutos que possam ser partilhados, vendidos. Continuando a espiral: depois de ter a planta, precisamos cultivar o interesse para que as pessoas queiram comer o que a planta dá; é fundamental ter um local para que possa estar disponível para a compra ou desfrute; a divulgação, a propaganda que tal oferta existe é decisiva para a transação/repasse ou venda acontecer.
Vivemos um contexto de policrise, onde considerar os vários aspectos de sustentação de processos é vital para nossa própria sobrevivência enquanto espécie. Não temos respostas para tudo, mas pelo menos, podemos ter um pouco mais de noção: se devemos colocar o pé no acelerador de um carro que pegamos emprestado ou se vamos caminhando, desfrutando as paisagens, com respeito aos outros seres rumo ao abismo.
*com colaboração de Maria Clara Lopes
Esse artigo foi publicado originalmente no sler.com.br