Alex cresceu entre os resíduos, tornou-se escritor e planeja seguir na academia
O livro Do Lixo a Bixo: a Cultura Social do Estudo e o Tripé de Sustentação da Vida, de Alexandro Cardoso, é muito mais do que o relato de um filho e neto de catador que se transformou em liderança da categoria e estudante de Ciências Sociais da Ufrgs. Para uma leitora com vida mais privilegiada, que nunca sentiu a dor da fome, nem tem noção do que seja viver sob a insegurança da água invadir a própria casa, a obra provoca certos incômodos.
Mas antes de explicar o que o livro da Editora Dialética, de Belo Horizonte, me suscitou, vou contar o que a obra trata. Alex, como é mais conhecido, cresceu em meio à coleta de recicláveis. Aos dois meses, já estava dentro de uma caixa de papelão dentro do carrinho puxado pelo pai.
Ele é um exemplo nítido de muitos outros brasileiros, que muito cedo, aos 16 anos, virou pai. Dessa forma, foi obrigado a abandonar os estudos para sustentar a família. Só que ele conseguiu com muita força de vontade, voltar a estudar aos 34 anos. Isso porque se destacou como liderança do Movimento Nacional dos Catadores de Resíduos (MNCR), foi convidado a dar palestras, viajou por vários países para levar a pauta da reciclagem a vários públicos. Depois de exaustivos dias de trabalho, à noite, frequentava aulas da rede pública. Conseguiu concluir o ensino fundamental e o ensino médio na modalidade Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Fez o cursinho popular da rede Emancipa (clique para conhecer, as inscrições estão abertas no Estado de São Paulo) e passou no vestibular da Ufrgs em 2017. Foi o primeiro catador a entrar na cobiçada universidade pública.
Pra mim, os escritos do Alex foram um soco no estômago e um assopro. Explico. Um soco porque percebi cada vez mais que temos muito a aprender com pessoas como o ele. Precisamos cada vez mais sair de nossas bolhas para compreendermos o quanto as relações socioambientais estão todas interligadas. E a diversidade e desigualdade social do nosso país tem muito a nos ensinar. Conheci o Alex no grupo de resíduos do POA Inquieta, do qual sou articuladora.
Quantas vezes nos sentimos desanimados, sem esperanças, sem força para enfrentar situações na qual pessoas como o Alex tiram de letra? Você que me lê possivelmente teve muito mais oportunidades que ele. No entanto, a força de vontade, a garra desse cara “dá de relho”, pra usar uma expressão bem gaudéria, em grande parte dos indivíduos de zonas mais abastadas.
Isso me incomoda porque hoje cada vez mais os jovens gastam mais energia em transitar no mundo das telas, dos games, do que dos desafios da vida real. Isso que o tal Meta (vou escrever sobre isso adiante) ainda não faz parte da rotina, mas seus tentáculos já estão enraizados.
O que o Alex precisou enfrentar estava dentro e fora dele para superar as adversidades. Foi obrigado pelas circunstâncias a abandonar a escola, mas sua inteligência e destreza foram lapidadas na “faculdade da vida” (ele menciona no livro que muitos diziam que ele não precisava estudar porque tinha essa tal experiência). Talvez o seu grande diferencial seja a autoconfiança. Mesmo tendo falta de muitas coisas materiais, ele evidencia no seu livro de 152 páginas o que lhe sustentou: amor, solidariedade, empatia. Alex se considera um catador de horizontes. Parece não sofrer de qualquer problema de saúde mental, o que atrasa boa parte do desenvolvimento da vida de milhões de pessoas.
Quanta gente do mesmo clã tem problemas que se soubessem se relacionar, colaborar uns com os outros, saindo do seu quadrado, seriam muito mais felizes? Vale lembrar que muitos sobrenomes que tiveram riqueza e conhecimento perderam tudo no decorrer do tempo. Alex relata no livro como sua família e outras dividiam a mesma peça para dormir, comer, enfim, viver. Ou seja, apesar de tudo ele revelou que foi feliz, teve carinho e atenção da família.
Temos muito a aprender com a trajetória do Alex. Ao ler, ouvia ele falar, do seu jeito tagarela. O texto, que ele disse não ter passado por um revisor por questões de economia, por vezes é repetitivo. Ele mesmo conta que escreveu pensando nos “compas” e também porque o leitor pode ler do começo ao fim, ou escolher algum dos temas de um de seus textos.
Alex esbanja o que a maior parte das pessoas não tem: uma visão de mundo centrada na coletividade. E ele conta no livro várias situações que demonstram o quanto a nossa sociedade está doente. Eu vi a Vila Cai-Cai crescer na beira do Guaíba no final do século passado. Andava de bicicleta por ali. Então, ao me deparar com as histórias relatadas por ele, logo me transportei para aquele cenário. Vale conferir o que a turma dele fazia para pegar as bicicletas dos ciclistas naqueles tempos de Cai-Cai (as “malocas”, como menciona, ficavam pouco antes da curva que dá na Fundação Iberê Camargo). Hoje o local é cheio de árvores que foram plantadas pelos moradores daquele tempo. O pessoal foi removido para o loteamento Cavalhada, onde hoje o Alex coordena a Ascat, Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis da Cavalhada.
Nunca mais vou olhar com os mesmos olhos pedintes e vendedores de sinaleira. A história do Alex com suas irmãs menores suplicando moedas sintetizam também uma face da realidade cruel, agravada pela pandemia. Não tem sido nada agradável andar nas ruas de Porto Alegre nos últimos tempos. Assim como em outras capitais, cresceu o número de pessoas em situação de rua. Segundo levantamento realizado em São Paulo, já são cerca de 32 mil pessoas em situação de rua na capital mais rica do Brasil!
Sopro de esperança
As narrativas do Alex são um sopro de esperança de como há pessoas boas. Ele agradece muito aos professores, ao cursinho, a rede de amigos e catadores. Cada vez estou mais convencida de que o caminho para superarmos as dificuldades, sejam elas materiais ou intangíveis são a colaboração e a empatia. Sairmos das nossas bolhas e ler livros como esse pode ser um primeiro passo.
Alex tomou gosto de ser escritor e já está preparando um novo livro. No início deste ano, vai lançar uma obra que aborda a cultura social da reciclagem, a ressignificação dos resíduos, o trabalho sujo, a solidariedade e a empatia. E mais: ele já entregou uma proposta de projeto para entrar no mestrado na mesma universidade. E a cada conquista, ele informa seus seguidores no Instagram. Confira em @alexcatador.
Depoimentos de quem leu
“Por um período da minha vida, passei com certa frequência pela avenida acima da Vila Cai Cai, não conseguia sequer imaginar como era a vida ali. Conheci através da narrativa do Alex, o que me impactou e tocou muito, me deixando desconfortável com a minha ignorância dentro da minha bolha. O livro nos mostra, longe da romantização da superação pessoal, o injusto e explorador sistema que vivemos, a falta de acesso ao mínimo de condições para se viver com dignidade. E o Alex nos apresenta tudo isto sem perder a doçura, a esperança, o amor. Foi um livro que presenteei alguns amigos e emprestei para outros. Uma leitura necessária”. Loraine Scholz Gomes, nutricionista aposentada
“Alex nos brinda com os relatos de sua infância, sua militância social, suas muitas viagens a trabalho, sua vasta vivência na escola da vida e também com seu olhar crítico, turbinado por seus estudos acadêmicos, frente à desigualdade e à exploração da população mais desfavorecida da sociedade. Como ele mesmo comenta, não bastou força de vontade para ir adiante em seus estudos. O tripé solidariedade, amor e empatia foi essencial para essa conquista. Como leitora, tive a felicidade de aprender com seus ensinamentos. Gratidão à ele pela coragem de espalhar a cultura dos estudos aos quatro vento “. Roberta Scheffer, servidora pública
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Foto em destaque de Vinícius Cardoso, filho de Alex.
Muito bom Silvia ! Parabéns, exemplo de vida para todos
Excelente matéria, Sílvia! Conheço a luta do Alex e dos catadores há um bom tempo, e tivemos maior proximidade, inclusive afetiva, no Poa Inquieta, onde também nos emocionamos com Paula Medeiros e Rúbia, entre outras lutadoras, bem como os apoiamos. Ainda estou lendo o livro do Alex, é um testemunho valioso de um segmento importante da classe trabalhadora, normalmente invisível e silenciada.
Muito bom, Sílvia! O Alex escreve com verdade e doçura e dá aula de humanidade, item que está em falta nas prateleiras da nossa sociedade tão individualista. Abraço!