O evento reuniu gente de várias partes de Porto Alegre para promover a cidadania
Imagine um lugar com gente de vários cantos da cidade, com distintas cores de pele, com todo mundo dançando junto desde rap, música gauchesca, samba e rock? E nesse local as pessoas podiam falar o que sentiam, podiam dizer o que desejariam e ainda estabeleciam laços de amizade? Pois foi isso que aconteceu no 1º Congresso Popular de Educação para Cidadania promovido pelos coletivos POA Inquieta e Ponta Cidadania. O evento foi realizado em zonas periféricas da Capital: na Vila Planetário na sexta, 26 de agosto, na Bom Jesus no sábado (27) e no Morro da Cruz, no domingo (28).
O evento foi histórico, emocionante e será lembrado por muito tempo por vários motivos por quem viveu aquela energia pulsante. A organização toda feita por voluntários, foi orquestrada por protagonistas anônimos que fazem a diferença onde atuam.
Já trabalhei para organizações, governos e tenho experiência de cobertura de eventos. Geralmente as falas, os trabalhos são conduzidos por homens brancos de meia idade. Ou então por lideranças partidárias, sindicais, de instituições ou governos. Nesse evento, foi a vez das mulheres negras, jovens da periferia, de gente que nunca é convidada para dar sua opinião, falarem como enxergam a Porto Alegre que ninguém quer ver. Nas rodas de conversa, a escuta ativa foi compactuada com crianças, adolescentes, adultos, velhos, pessoas de distintas condições de vida. Uma diversidade rara de ver em tempos de polarização.
Um dos aspectos mais importantes do evento foi promover a escuta de vozes que são emudecidas na nossa sociedade, no sistema onde vivemos em bolhas e dividimos impressões com pessoas da mesma classe social. E o que veio à tona foi tão rico, tão expressivo, que, avalio, vai demorar um pouco para quem viveu essa experiência processar tudo. Também há dezenas de relatorias dos grupos para serem compiladas. Ao todo foram realizadas 25 rodas de conversa com a mediação e relatoria de aproximadamente 70 pessoas.
A verba que se conseguiu de patrocínio serviu principalmente para pagar transporte, alimentação, entre outros gastos para viabilizar a participação de pessoas de regiões periféricas. Sou testemunha de como pessoas da organização se empenharam em promover essa integração nos encontros em meses anteriores ao congresso. Não consegui me envolver na organização prévia do evento. Mas sei que as pessoas doaram seu recurso mais precioso: o tempo, para concretizarem um sonho coletivo: transformar Porto Alegre em um lugar melhor de viver, com mais inclusão, sustentabilidade, criatividade e civilidade.
Outro aspecto desafiador foi fazer as coisas acontecerem de um jeito colaborativo tendo que superar diferenças de interpretação, de entendimentos e de personalidades fortes. O congresso foi feito em um período muito curto, a decisão pela data – eleita principalmente para evitar problemas devido às eleições – foi definida por votação no encontro no CTG Estância Pasqualeto, no Morro da Cruz no final de junho.
Não consegui me envolver na organização prévia do evento. Acompanhei eventos anteriores confira aqui o encontro no Nau, na zona Norte de Porto Alegre, e no CTG Estância Pasqualeto, no Morro da Cruz. Sei que as pessoas doaram seu recurso mais precioso: o tempo, para concretizarem um sonho coletivo: transformar Porto Alegre em um lugar melhor de viver, com mais inclusão, sustentabilidade, criatividade e civilidade.
Precisamos conjugar o verbo esperançar, como já disse Paulo Freire, pois o futuro desejável começa primeiro dentro de nós. E estar em coletivos, organizações onde se exerce o voluntariado é algo transformador, pois constatamos que o mundo pode ser bem melhor.
Acredito que todos temos a ganhar quando conhecemos gente que supera as dificuldades e faz do limão uma limonada. É urgente que pessoas de vários cantos da cidade se unam para fazer um lugar melhor para todos. Pode parecer um tanto utópico, mas o primeiro passo para as coisas acontecerem é visualizarmos futuros desejáveis. E um dos pontos que mais me chamou a atenção nas rodas de conversa foi justamente a dificuldade de as pessoas imaginarem como seria, o que deveria ter um lugar bom de se morar. E se aparecesse o gênio da lâmpada? E o que deveria ter em uma cidade onde todos fossem felizes? Mesmo depois das indagações, um denso silêncio penetrou nas duas salas onde que presenciei a pergunta.
Confira alguns depoimentos de quem participou
“O evento teve experiências muito relevantes que mostraram a realidade da vida das pessoas no Morro da Cruz, evidenciando como vêem a cidade, seus sonhos em relação a ela e a expressão de medidas concretas para melhora-la. Logo em seguida, tivemos atividades culturais locais maravilhosas trazendo energia muito positiva a todas pessoas presentes. Espero que as ideias colocadas cheguem à sociedade, ao poder público e às empresas que possuem sensibilidade socioambiental para melhorar a qualidade de vida das pessoas daquela região. Participei da Roda de educação ambiental e a de inclusão social. Ótimas experiências de grande aprendizado.” Simone Portela de Azambuja – vice-presidenta da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), participante da Comissão Estadual de Produção Orgânica/MAPA/RS e do NAVISUAL/UFRGS.
“Foi boa a experiência. Seria importante que essa experiência se transportasse para toda cidade. Pois ela atingiu mais duas regiões, o Partenon e a região Leste. Nós temos que decidir como concatenamos uma boa participação dos estudantes, já que a questão é a educação. Pela manhã (no Morro da Cruz), como crítica, o tema ficou monopolizado entre os professores, quem já está mais incluído nesse tema. A questão ambiental é fundamental na nossa vida, a vida do planeta é um problema cósmico. Para o próximo encontro, temos que convencer ou dobrar os governos para que digam a que vieram. Não é por falta de leis, de proposição. Nós precisamos que a sociedade dê um salto de consciência. A Amazônia está queimando, está sendo derrubada e todo mundo está olhando. É um problema de consciência, mas também de governos que estão cada vez mais pobres nas temáticas fundamentais, como questões ambientais e educação. Não é de graça que propuseram o fim da sociologia, da filosofia. Nós somos os resistentes. Precisamos avançar para ser os ofensivos nessa política”. Antônio Matos, da coordenação do Fórum de Unidades de Triagem de Resíduos Recicláveis e representante do Movimento Negro Unificado.
“Achei a atividade muito importante por trazer a discussão sobre empreendedorismo para os estudantes. No começo estavam tímidos, mas depois foram se soltando e entendendo um pouco mais, a partir de uma dinâmica feita pelo Michel (do Morro da Cruz) foram se entrosando, entendendo o que era empreendedorismo e foi possível dessa forma mobilizá-los para saber que empreendedorismo eles vêem, o que querem para o futuro. Eu achei fantástica essa possibilidade de experimentar. Achei muito importante trazer o congresso para os territórios onde os participantes estão. Fazemos discussões sobre empreendedorismo, logística reversa, questões ambientais, mas sempre confinados em espaços onde nem todos se sentem incluídos. Trazer para esses locais nos fez sentir como essas discussões chegam ou até nem chegam. Foi uma forma bacana de aproximar as linguagens.” Aurélia Melo, professora e diretora de Pesquisa e Inovação da Viggas Colab.
“Achei a iniciativa muito positiva. Porto Alegre é uma cidade que há mais de 16 anos está carente de um projeto político claro, com objetivos que sejam conhecidos de toda sociedade, antes de cada eleição e sobretudo um projeto político que envolva todas as comunidades e o encontro de comunidades diversas. É preciso construir um sentido coletivo. A cidade perdeu muito seu sentido coletivo. Por isso que eu sinto em Porto Alegre um pessimismo. Antes a gente viveu um período muito bom, de otimismo, quando foi modelo para outros países, com eventos interessantes acontecendo. Hoje o que a gente sente é muito individualismo, se falou na roda isso. As pessoas agem de acordo com o seu interesse, sem pensar se o que fazem vai gerar um impacto para toda sociedade. Iniciativas como essa, conheci pela minha professora Adriane Ferrarini, que faz parte do POA Inquieta. Ela teve razão em insistir comigo e com outros alunos porque é um primeiro passo, necessário. Quem sabe a cidade consiga se encontrar com ela mesma, para tentar encontrar um novo projeto comum. O que eu também percebo é que Porto Alegre elege prefeitos a cada quatro anos e cada um vem com suas manias, seus projetos pessoais ou do seu partido. Não existe mais coerência de um prefeito que transmita para outro e assim por diante. Eventos como esse talvez possam formar uma massa crítica, com demandas de um mínimo denominador comum”. Dorian Filho, mestrando de Ciências Sociais da Unisinos.
“Trouxe como contribuição na roda de conversa sobre empreendedorismo um pouco da minha história. Sou cria da comunidade da periferia. Minha vó era lavadeira, mas tinha uma liderança comunitária. Ela cuidava das crianças da comunidade para as mulheres puderem trabalhar. Nunca cobrou. Ela batia de porta em porta pedindo farinha, ovos, enfim, para fazer uma alimentação enquanto essas mulheres iam para o mercado de trabalho. Acabou que eu estava junto e misturada. Eu era neta, pequena. Eu era filha de uma filha dela que teve filhos, mãe solo. As mulheres se ajudavam muito dentro da comunidade. E eu tive aquele olhar político sobre o que minha avó fazia. De repente, me dei conta de que ela era uma mulher que fazia um trabalho político, individual, dentro de uma comunidade de fortalecimento da defesa das mulheres da violência. Isso era fazer política dentro da comunidade. Hoje nós temos associações de moradores, clubes de mães. Com esse olhar eu cresci e vim entendendo que tinha que ter um sistema maior que nos protegesse. Hoje, depois depois de formada, de ter ficado fora do mercado de trabalho, fiz muitas coisas, até me dar por conta que a educação era a porta de entrada que poderia nos dar segurança para nós mulheres, pobres e negras para ascensão. Nossa família conseguiu estudar na Escola Técnica Parobé, consegui fazer o curso técnico de enfermagem, fiquei no Hospital Conceição por 20 anos, até despertar a vontade de fazer uma faculdade. Me formei em Serviço Social e sou aposentada. Pelo Clube Satélite Prontidão, trabalho em várias ações no Rubem Berta. Entendo que tem que ter espaço para discussão, integração, de fortalecimento mesmo para podermos ter uma profissão. Temos que ter liberdade, pois essência nos temos, do que nós queremos. Mas temos que ter espaço, dentro da comunidade, que nos fortaleça para criar asas e voa no mundo”. Carmem Costa, voluntária do Departamento de Assistência Social do Clube Satélite Prontidão.
Rumo a 2023
“Estamos muito felizes pois acreditamos que essas mais de 650 pessoas que circularam nos três lugares do evento são potenciais de conexão para a realização de um congresso muito maior em 2023”. Negra Jaque, uma das organizadoras do Congresso e mestre de cerimônia das atividades artísticas.
Esse artigo foi publicado originalmente no sler.com.br
Infelizmente não pude participar do congresso de roda de conversas. A importancia desses congresdo é primordial para mostar a todos que os coletivos tem uma função fundamental para essas comunidades entenderem sua força. Parabéns a todos os envolvidos.