Segurança climática para tempos de eventos extremos

Celebro a aprovação da PEC “mais urgente do mundo” e parabenizo aos ambientalistas que estão conseguindo surfar as ondas desse oceano revolto

Estamos remando, outros nadando, em um oceano bem turbulento. Tsunamis, ondas de vários tamanhos têm surgido de todos os lados, nos deixando, por vezes, estonteados, sem saber onde se agarrar.  Nessas situações, a calma, a persistência e o discernimento são opções que podem garantir a nossa sobrevivência. A amiga Monica Lan tem me alertado o quanto as pessoas hoje precisam conhecer, ter contato com situações que as inspirem.  “Porque é disso que a alma gosta. E inspira mais pessoas também. E essas pessoas criam mundos melhores e as pessoas desesperadas afundam”.

Nem preciso ficar relatando aqui as diversas circunstâncias que temos vivido que mais nos afogam do que impulsionam a sairmos da correnteza, dos redemoinhos… E nesse mar revolto, a humanidade precisa de pessoas, organizações que enxerguem longe, que saibam conduzir navios, barcos que consigam superar esses ambientes inóspitos. Ou seja, precisamos valorizar e celebrar as conquistas do caminho que nos leva a nossa sapiência.

Faço essa analogia para explicar o nosso contexto de crise climática. O maior desafio planetário que ameaça a nossa espécie, do nosso modo de vida e que começa, é claro, pegando em cheio as populações mais vulneráveis.

Nessa semana, graças a uma intensa mobilização de ambientalistas, e de pessoas que conheço e sei o quanto são sérias e empenhadas em deixar um legado positivo no mundo, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou por 26 votos a 10 Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que estabelece como direitos fundamentais dos brasileiros um “meio ambiente ecologicamente equilibrado” e a “segurança climática”. Esses termos seriam incluídos na Constituição junto com o direito à liberdade, segurança, propriedade e igualdade entre os brasileiros.

Clique aqui para saber mais sobre o que chamam de a lei mais urgente do mundo.

Um dos autores do projeto, o deputado Rodrigo Agostinho (PSB/SP), um ser humano singular, que tive o privilégio de conviver quando trabalhava na Rede de ONGs da Mata Atlântica, explica que esse assunto tem a mais alta relevância.  Ele é um dos congressistas que mais tem atuado na defesa do meio ambiente. “Não fazia sentido não dar o tratamento adequado na nossa legislação ambiental. Nós debatemos muito ao longo de dois anos com a sociedade civil e houve um entendimento que seria necessário garantir a segurança climática como direito constitucional. Tivemos um trabalho muito grande para colher o número de assinaturas necessárias para sua aprovação e para que tivesse uma boa relatoria. Foi nomeada a deputada Joênia Wapichana (REDE/RR), primeira liderança indígena mulher eleita na Câmara dos Deputados”.

Rodrigo é um cara que me inspira e ainda por cima é ornitólogo! (o livro dele é o máximo). Embora tenha feito mais de 65 mil votos, não se reelegeu, mas segue firme na defesa de um ambiente equilibrado para todos. Ele conta que a PEC está pronta para ir a plenário ou a uma comissão especial, onde pode ter seu texto debatido. A proposta inclui a segurança climática como direito fundamental no Artigo 5º da Constituição. Também inclui no Artigo 170 como um princípio da ordem econômica, com respeito à questão climática e no Artigo 225, onde tem também um dispositivo que trata da necessidade de o Brasil realizar os investimentos necessários em mitigação e adaptação.

Rodrigo lembra que o Brasil é hoje provavelmente o quinto maior emissor de Gases de Efeito Estufa (GEEs). “O País hoje tem uma grande contribuição nesse grave problema. Precisa fazer seu dever de casa, pois essas emissões são ocasionadas por desmatamento, destruição de florestas e outras atividades agropecuárias, ao mesmo tempo que o Brasil é um grande produtor de alimentos.” Ou seja, estamos sujeitos aos impactos das mudanças climáticas na nossa economia. Além disso, vão provocar perdas na biodiversidade, na produção de água para abastecimento de cidades, impactar a vida das populações do nosso País.

Para o advogado André Lima, fundador e coordenador do projeto Radar Clima e Sustentabilidade, do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), responsável pelo Farol Verde (vale muito conhecer, clica aí), a aprovação foi um grande avanço. “Ao acolher essa emenda, será instalada na Constituição o tripé da sustentabilidade com o grande guarda-chuva da segurança climática. O Artigo 5º é social, o 170 é econômico e o 225 é ambiental, isso dará estrutura à segurança climática. É um grande desafio, pois o governo atual é contra, mas conseguimos passar por uma fase fundamental, que é a admissibilidade e a constitucionalidade da proposta. Agora vamos para a instalação de uma comissão especial e duas votações no plenário da Câmara e uma no Senado. Não acredito que possamos avançar mais nessa legislatura. E vai depender da próxima. Espero que tenhamos um governante mais alinhado à agenda climática ambiental e não um negacionista e antiambiental”.

E o que o clima tem a ver com pobreza?

Justamente nessa semana em que PEC da segurança climática foi aprovada, o prefeito de Porto Alegre deu uma declaração não só infeliz, mas que denota a sua ignorância ou, quem sabe, a sua posição negacionista com relação à crise climática.  Eis o que saiu no site oficial da Prefeitura:
“O prefeito Sebastião Melo disse nesta segunda-feira, 17, que é preciso combater a pobreza antes de se defender justiça climática. Convidado para apresentar exemplos positivos de Porto Alegre no 8º Fórum Global do Pacto de Milão, no Rio de Janeiro, Melo afirmou que é preciso implementar medidas concretas de combate à fome.

“Como você vai falar em questão climática com um cidadão que vive junto do esgoto a céu aberto, com luz e água irregulares e quando o acesso asfáltico nunca chegou na frente da sua casa”.

Senti vergonha dessa declaração do representante da nossa aldeia. Pois fica em Porto Alegre o Centro Polar e Climático da UFRGS, justamente onde estão cientistas de várias especialidades que têm comprovado o aumento da temperatura (inclusive eles estão no momento em missão na Antártida). E mais, às vésperas da Conferência do Clima no Egito, a COP27!

O arquiteto Alexandre Pereira Santos, que conheci no coletivo POA Inquieta, está fazendo seu doutorado na Universidade de Hamburgo e vem estudando o impacto das mudanças climáticas especialmente nas áreas mais vulneráveis da capital gaúcha. Uma das suas pesquisas é justamente o que vem acontecendo na região de Humaitá/Navegantes e das Ilhas de Porto Alegre, incluindo mais dados de renda da população. E ele tem constatado que as populações mais pobres são as que mais sofrem com as cheias do Guaíba. “Sofrem mais porque são excluídos da cidade, os locais que ocupam sempre são piores, são mais sensíveis à ocorrência de intempéries e porque onde se instalam são os locais mais inseguros. E aí a gente tem a dobradinha: a alta vulnerabilidade social e mais exposição aos impactos climáticos. E isso aponta para uma injustiça social muito grande.”

 A questão climática não é uma questão política, é o que milhares de cientistas do mundo inteiro estão alertando, e há tempo.  

Mário Mantovani, atual diretor institucional da Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente (Anamma), ficou surpreso com a declaração do prefeito porque justamente são os municípios que mais precisam saber lidar com eventos extremos, intempéries provocadas pelo agravamento das mudanças climáticas.

O Rio Grande do Sul e Santa Catarina vem tendo com maior frequência enchentes, secas, prejuízos em decorrência de ciclones, o que significam grandes custos não só financeiros para os municípios. Há vários estudos que demonstram o quanto é fundamental no momento investir em mitigação e adaptação climática, pois é muito mais caro correr atrás do prejuízo. Sem falar em perdas de vidas.  Vale ler um texto que fiz sobre esse assunto, clique aqui.

Mantovani foi um dos fundadores da Anamma, atuou muitos anos na Fundação SOS Mata Atlântica e vem acompanhando o trabalho de prefeituras que já estão cientes dos desafios do Antropoceno. Ele defende a utilização de soluções baseadas na natureza, como um planejamento bem feito de paisagismo com arborização urbana para melhorar a drenagem, por exemplo. O ambientalista menciona o trabalho de Axel Grael, de Niterói, que criou a primeira secretaria municipal do Brasil dedicada ao clima. Também cita o plano de adaptação que está sendo feito pela prefeitura de Santos e a lei orgânica do município de Porto Seguro, que também contempla ações preventivas com relação ao clima.

‘É um meio de evitar alto impacto na qualidade de vida das pessoas,

sai mais barato, não é incompatível o desenvolvimento’, argumenta Mantovani, acrescentando que a ocupação de áreas de risco, esgoto a céu aberto são questões transversais que têm tudo a ver com as mudanças climáticas. “Governos negacionistas atraem pessoas que dificuldade de entendimento, talvez seja porque eles não tenham alcance mental’, justifica.

Rubens Harry Born, especialista em políticas públicas e acordos multilaterais ambientais da Fundação Grupo Esquel Brasil, esclarece que “as crises da pobreza, da desigualdade, das pandemias, da poluição, da perda de biodiversidade e das mudanças climáticas são uma crise só: a crise do modelo injusto e insustentável de estruturação da civilização humana.  Para Born, que desde 1990 acompanha as negociações nacionais e internacionais em mudanças do clima, de biodiversidade e de desenvolvimento sustentável, as ações urgentes para lidar com esse complexo contexto “requerem abordagens integradas, lastreadas em direitos, em vez de transferir para o futuro os desafios que devem ser enfrentados agora, por autoridades e pela sociedade”. Born é autor do livro “Mudanças climáticas: direitos, legislação e políticas públicas. Panorama do regime multilateral global, incluindo o Acordo de Paris, e sua aplicação no Brasil”, lançado em 2017.

Por tudo isso e mais um pouco, celebro e parabenizo os envolvidos na aprovação da PEC que estabelece como direitos fundamentais dos brasileiros um “meio ambiente ecologicamente equilibrado” e a “segurança climática”. Precisamos saber valorizar quem está fazendo a diferença nesse oceano revolto: aqueles que sabem surfar tantos tipos diferentes de onda e mirar um faixo de luz lá longe, no horizonte, de um farol no meio na escuridão.

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