Calor fora do Arrabalde

Nossa cultura europeia (me incluo) de se achar superior aos conhecimentos dos povos originários está fadada à infelicidade, ao fracasso, ao fim da linha

Levante o dedo quem não sofreu com o calor dos últimos dias em pleno março. Tá complicado, né? Pra mim, especialmente, os sintomas da menopausa se agravam com o aumento da temperatura. As formigas ficaram ouriçadas. Aqui em casa, elas circulavam na cozinha, no quarto, no escritório.

Se eu passo calor, imagina quem trabalha em locais sem ventilação, sem ar-condicionado ou em áreas descobertas, sem árvores. E o preço da conta de luz pra quem tem ar-condicionado é um rombo no orçamento da classe média. Ou seja, altas temperaturas fazem mal pra saúde, para o bolso dos reles mortais, para pequenas empresas e também para governos. Ou seja, todo mundo está sentindo na pele o impacto desse calor insuportável. Vale lembrar as mulheres, especialmente as negras, as de periferia, assim como idosas, crianças, sofrem muito mais.

Só que para pensarmos minimamente no impacto em outros contextos, geralmente precisamos sentir compaixão por outras pessoas, devemos nos colocar no lugar dos outros. É primordial estarmos minimamente resolvidas com as nossas demandas. Tem gente que não consegue olhar para o outro, pois corre atrás da sua própria sobrevivência todos os dias. Quando a temperatura sobe demais no “Forno Alegre”, não consigo pensar direito. Nem concateno as ideias. Sou obrigada a me resguardar entre ventiladores ou algum lugar com ar-condicionado para tentar colocar a cabeça em ordem.

Cada um tem seu limite. Cada um sabe – ou deveria saber – até onde pode chegar. E aí, em pleno século XXI, me indago: será que um dia cada um de nós terá consciência do quanto está acelerando ou alimentando a sua pulsão de morte? Gostei da definição desta matéria da Superinteressante, com relação à essa expressão cunhada pelo Freud.

Nesse sentido, proponho que conectemos os efeitos dessas altas temperaturas ao que fazemos ao cavar a própria sepultura (e na nossa família, inclusive, as gerações que virão também). O buraco está sendo aberto com colherinha de chá ou retroescavadeira? Explico melhor: o que você faz no dia a dia, na sua atividade profissional, agrava ou ameniza o calor? Você trabalha para quem está pouco se lixando pra diminuir essa sensação, que chegou a mais de 60 graus em alguns lugares do Brasil? Clique aqui para saber mais sobre os recordes climáticos da Organização Meteorológica Mundial.

Se estamos todos na mesma bola que rebola lá no céu, como já inventou o Palavra Cantada (quem é mãe, tia, professora, sabe bem o que é), faz sentido estar no mundo para ajudar a colocar fogo não só no parquinho, mas no resto do bairro, da cidade? Desculpe as metáforas, mas te convido à reflexão. Creio que ir para um local fresco, pode ser melhor para interpretar.

Tem muita gente que já se deu conta desse contexto – de que estamos no Antropoceno, estamos contribuindo para aumentar a temperatura – que está tentando ajudar a melhorar esse cenário de eventos extremos mais frequentes, de caos climático?

Para se compreender os rumos do desenvolvimento

Recentemente, terminei de ler “Arrabalde – Em busca da Amazônia”, livro (Editora Companhia das Letras, 2022) de João Moreira Salles (foto da capa). Simplesmente fantástico. Recomendo a todos que queiram compreender os tantos porquês de estarmos vivendo essa e tantas outras ondas de calor. Nossa cultura europeia (me incluo e sei bem porque sou descendente de italianos, portugueses e alemães) de se achar superior aos conhecimentos dos povos originários (que viveram milhares de anos em harmonia com a natureza) está fadada à infelicidade, ao fracasso, ao fim da linha. São visões e valores de um sistema, um jeito de viver garimpeiro, que já vem dando tantos sinais de falência.

Para quem é do interior do Rio Grande do Sul, como eu, que sabe o quanto os gaúchos e seus descendentes são considerados desbravadores para uns e gafanhotos para outros, o livro é uma preciosidade. No que diz respeito ao que aconteceu com a Amazônia nas últimas décadas, muitos representantes de gerações de imigrantes foram incentivados a derrubar, a promover a mudança da paisagem. Convivi com pessoas próximas que viveram o que o livro conta. A narrativa me transportou para enredos que clarearam o que estava por trás de histórias onde eu fui coadjuvante. A obra me instigou do início ao fim e provocou muitos insights.

Também tive algumas experiências profissionais na Amazônia, especialmente no Pará, onde o autor se debruça para contar vários lados dessa visão de desenvolvimento de qualquer jeito. Desde que fui a primeira vez para o Pará, fiquei muito tocada com o que vi. Fiquei impressionada quando conheci o Museu João Fona, em Santarém, em um prédio construído entre os anos de 1853 a 1868. Chegava a ser deprimente. Apresentava poucas peças, a maioria réplicas, de cerâmicas tapajônicas. Um museu pobre, com paredes repletas de fotografias antigas de homens brancos com molduras pesadas.

As entrevistas, as sacadas do caçula dos Moreira Salles evidenciam cicatrizes, chagas que foram abertas e se quer foram processadas, repensadas, para não se cair nas mesmas ciladas do passado. Ele observa e dá voz a tantos lados do que é genuinamente brasileiro. Algo que vem crescendo o interesse nos últimos tempos.

Confesso que um dos pontos que mais me encantou foi o olhar, a escuta e a dedicação de um sujeito milionário, de uma das famílias mais ricas do Brasil, que parou sua vida e foi para o Pará a fim de entender melhor o contexto e escrever. Ele poderia ter feito tudo, de outra forma. Contratar gente que fizesse por ele. Poderia desfrutar de outra posição. Mas não, quis ele mesmo conferir e ouvir as narrativas que levaram e até hoje fazem com que tanta floresta vire cinza.

Esse cara tem noção da sua responsabilidade enquanto detentor de recursos que podem ajudar a melhorar o que vem pela frente. Nota-se o quanto tem compaixão pelo contexto alheio. Sabe empregar sua energia e seu dinheiro para auxiliar a aumentar a percepção do quanto todos precisamos enxergar a Amazônia como ela é.

Com seus predicativos – ele coleciona prêmios, livros, fundou a revista Piauí, o Instituto Serra Pilheira, que financia projetos para difusão da Ciência etc, etc – ele tem portas abertas para conversar com qualquer um. Ou melhor, tem acesso às fontes mais difíceis de se conseguir uma declaração. Os ongueiros mais ocupados da Amazônia, quiçá do Brasil, largaram tudo que estavam fazendo para acompanhá-lo, subsidiá-lo com informações. Outro aspecto super relevante da publicação: as informações foram checadas, rechecadas e várias pessoas foram envolvidas na elaboração de uma edição caprichada, com referências, créditos, agradecimentos (humildade é uma de suas características) e, o melhor de tudo: um índice remissivo!

Ou seja, essa obra é leitura obrigatória para se compreender vários lados e para onde vai a ânsia de um desenvolvimento eurocêntrico. Não só do que já se tentou fazer com a Amazônia, mas sobre a visão ultrapassada de se dar mais importância às monoculturas do que a biodiversidade. De se dar mais destaque ao dinheiro, ao lucro rápido, que provoca dor, morte, sofrimento, do que a dignidade, o modo de vida sustentável de longo prazo.

Por tudo isso e mais um pouco, eu celebro e agradeço muito ao João Moreira Salles. Ter empregado seu tempo, sua energia para virar repórter para a Piauí, e que acabou virando o Arrabalde. Já pensou que maravilha se tivéssemos mais endinheirados com a cultura, a educação e a visão semelhantes a dele? Com certeza, teríamos muito mais gente nos puxando, nos alertando sobre a velocidade rumo ao precipício, sobre os significados dessas altíssimas temperaturas. Também não posso deixar de agradecer a minha amiga Ana Luíza que me deu o livro de presente de aniversário.

Não adianta os cientistas, o IPCC, a academia anunciar que estamos à beira do colapso. Precisamos de mais gente com o ímpeto do João Moreira Salles. Daí, quem sabe, “esse tal de ponto de não retorno”, seria apenas uma opção. O calor, que esquenta as cabeças pensantes, serviria de aviso, e haveria mais alternativas de caminhos para um futuro mais refrescante.

Coisas que acontecem na Amazônia

Há situações tão surreais na Amazônia, que chegam a ser difíceis de acreditar. O Ministério Público Federal (MPF) divulgou uma nota pública, no último dia 15, desmentindo informações que circulam na região nordeste do Pará de que invasores retirados da Terra Indígena Alto Rio Guamá em 2023 poderiam retornar às áreas por uma suposta decisão judicial.

Vocês acreditam que foi promovida até uma “audiência pública” por farsantes em uma escola no município de Nova Esperança do Piriá para comunicar à população de que eles teriam o “direito de retornar” às áreas ocupadas ilegalmente dentro do território indígena? Conforme o Clima Info, um sujeito se apresentou como juiz “Dr. Sampaio”, disse à população local que era o responsável pela decisão judicial favorável aos invasores.

 

Foto da Capa: João Moreira Salles - Reprodução Globo
Texto originalmente publicado na SLER
 

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