Professora de jornalismo, extrapolou suas funções como acadêmica e jornalista, deixando uma lacuna na área em que atuava
Há chegadas e partidas que marcam nossa vida. O que acontece no meio delas é o que marca nossa existência. Pois a partida da Beatriz Dornelles, 64 anos, mexeu comigo. Para quem não a conheceu, ela foi professora da Famecos PUCRS, diretora da Associação Riograndense de Imprensa (ARI) e uma pessoa fora da curva.
Aprendi ao longo da minha trajetória o quanto precisamos honrar, ser gratos a quem nos abre portas, oportunidades. Sabermos agradecer a quem se importa conosco, ainda mais quem não nos conhece direito ou não tem qualquer relação com a nossa história. Beatriz não foi minha professora, não fomos colegas de trabalho, não convivemos pessoalmente. Mas tivemos intensa troca de mensagens, fizemos projetos juntas e tínhamos muitos planos.
A Beatriz Dornelles fez a diferença na minha vida num momento em que me sentia uma ilha. Ela se preocupava com o ecossistema do exercício profissional, dos rumos do jornalismo, da remuneração justa e com a ética da atuação da categoria. Ela desempenhou um papel que vai muito além das suas funções em sala de aula ou de diretora da ARI.
Sentindo minha inquietação diante do cenário, ela me incentivou a voltar à faculdade, a tentar uma vaga no mestrado em Comunicação. Tenho aprendido muito e trocado experiências na mesma instituição em que me formei, a Famecos, na PUCRS. Lá, tenho compreendido contextos que antes me atordoavam, tenho enxergado outras formas de interpretar o mundo.
Nas diversas mensagens que trocamos via zap, ora ela melhorava, ora piorava desde o começo de 2022. Durante seu tratamento oncológico, sempre mantinha a esperança e projetos. Chegou a me contar que tinha sonhado que tinha voltado a dar aula e que me via entre os estudantes. Eu me aproximei dela devido a uma indicação do professor Trasel, da UFRGS, pois estava com uma ideia de projeto: fazer reportagens para veicular em jornais do interior para concorrer a um edital do Instituto Serrapilheira. E ele foi taxativo: precisas conversar com a professora Beatriz Dornelles!
A professora pesquisava Folkcomunicação, uma teoria que compreende a região como um lugar onde se manifestam práticas singulares de comunicação e cultura. Em um país como o Brasil, a diversidade de expressões culturais e os fluxos de comunicação popular e massiva têm um imenso campo para análises dos fenômenos da comunicação. “Reflete tendências presentes na sociedade midiatizada, a valorização das narrativas hegemônicas e o apagamento das referências que instituem a memória e a identidade de diferentes localidades”, conforme um dos textos que ela me enviou divulgando uma revista da qual seria colaboradora.
E mais: “A cultura local e regional apresenta significados próprios que se reconfiguram a partir de processos de troca, diálogo e intercâmbio, estabelecendo conexões com cenários globais. A lógica da proximidade, estabelecida pelo vínculo com o território, torna-se, portanto, representativa da construção da cultura de um local, contrastando com o processo de desterritorialização”.
Quando a partida é definitiva
Nos últimos meses, tenho ido com uma certa frequência a velórios e enterros. E me pergunto: se é certo que todos vamos partir, por que as pessoas em vida não se preocupam com o contexto dos que vão ficar? Convivo com gente que acumula tanta coisa, vivem demonstrando que não precisam de ninguém, até que alguma circunstância mostra que ninguém pode viver sem alguém por perto. Quando vou a um velório, lembro logo da sábia Tita, uma mulher que foi mais que amiga, quase minha terceira mãe. Do alto da sua sabedoria popular, ela sentenciava: “Caixão não tem perna, todo mundo precisa de ajuda”.
No velório da Beatriz Dornelles, perguntei para o presidente da ARI, José Nunes: e agora, quem se dedicará a estudar o que acontece com o jornalismo local, do interior do Rio Grande do Sul? Quem tem registrado a história do jornalismo dos bairros? Ele respondeu: ninguém. Ou seja, ela deixa uma imensa lacuna.
Isso me fez refletir. As diferenças entre as pessoas não são apenas aquelas da música Panis et circense, dos memoráveis Os Mutantes. O grupo do prelúdio da carreira de Rita Lee reforçava que “as pessoas na sala de jantar estão ocupadas em nascer e morrer”. Além dessas, que são a maioria disparada, existem aquelas que se ocupam em deixar o mundo melhor. E entre essas, ainda há as que procuram preparar o terreno para que seu legado continue quando partirem.
Todos os textos de Sílvia Marcuzzo estão AQUI. Foto da Capa: Reprodução do Facebook Texto Originalmente publicado na SLER