Alexandra Reschke: uma existência que não passou em branco

Da luta contra o câncer às novas políticas de Estado, arquiteta foi um exemplo de dedicação à causa pública e às pessoas

Existe pessoas que passam. Outras marcam, deixam um legado. Estava escrevendo um artigo sobre o livro da Christa Berger: “Jurema Finamour – a jornalista silenciada” e fui surpreendida com a partida da Alexandra Reschke. Estava mexida com o impacto de tudo que Jurema protagonizou e seu destino. Ela foi uma mulher que fez tanto e foi apagada da história recente do Brasil (a coluna sobre a obra da Christa vai sair em breve). E aí veio essa notícia, que só fiquei sabendo depois que o amigo Henrique disse para eu olhar no grupo da Fluxonomia4D. Alexandra fez parte da comunidade da “Flux”, como chamamos, e foi decisiva em vários momentos pelo seu jeito, sua história e sua forma de liderança. Ela emitia luz, serenidade por onde circulava, seja pelas telas ou ao vivo e a cores.

Ela partiu depois de nove dias internada no hospital e muitos anos de combate ao câncer. A primeira vez que a doença apareceu foi em uma mama, em 2005. Depois surgiu em outros lugares. Ela lutou bravamente e acessou vários tipos de terapias, o que é narrado no livro A Flor da Cura. Até que em dezembro de 2022 a maldita doença apareceu de novo. Ela conta no livro sua experiência de cuidado com a vida, o relacionamento com os amigos em mais de uma década de convivência com o câncer.

Fiquei em choque, pois tinha tentado encontrar com ela algumas vezes, desde que veio de mala e cuia para Porto Alegre. Não consegui encontrá-la. Escrevo essas linhas com intuito de não deixar que a trajetória da Alê, como era chamada pelos amigos, caia no esquecimento. Os depoimentos a seguir evidenciam o que ela representou, não só para as pessoas que conviveram, mas na adoção de políticas públicas lideradas por ela.

Fiz a produção do lançamento do livro A Flor da Cura, em Porto Alegre. Como ela tinha – ainda tem – amigos espalhados por todo Brasil, a obra teve sessão de autógrafos em várias cidades.  A obra é uma preciosidade. Vale demais a leitura, especialmente para quem está em busca do seu autoconhecimento. A orelha tem a assinatura de Kaká Werá que escreveu: “Não se trata de um relato de alguém que pela força de superação venceu um inimigo terrível e mortal, mas de quem conseguiu através de um profundo mergulho em seu interior, compreender causas – além das materiais – e cuidar de cada uma delas recorrendo a uma rede de cooperação reunindo pessoas, sistemas de cura e metodologias integrativas”. Tem ainda posfácio de Roberto Crema, reitor da Unipaz.

A filha, Maria Clara, me contou que as cinzas da mãe serão depositadas em árvores que serão plantadas em Brasília e na capital gaúcha. Ela era natural de Caxias do Sul, mas morou em várias cidades do Brasil. Pela filha, as cinzas deveriam ser espalhadas por todos os lugares onde a mãe deixou sua marca.

Só fiquei sabendo da relevância, do impacto do trabalho que ela prestou ao buscar informações para fazer esta publicação. Ela era super humilde, nunca se vangloriou com o que fez entre as pessoas que convivia.

Por tudo isso e mais um pouco, estou fazendo esta postagem, aproveitando meu espaço aqui no Sler. Selecionei algumas entrevistas e depoimentos que evidenciam o quanto essa mulher, que partiu aos 60 anos, foi determinante para a vida de tanta gente, sempre considerando a necessidade de manutenção dos ambientes naturais.

Além dela ter sido um ser humano incrível, doce, inteligente, gentil e muito espiritualizada, seu jeito de liderar com atributos femininos deixou profundas marcas. Não só entre as pessoas que conviveram perto dela, mas também entre as que se beneficiaram com suas ações.

Alê abriu o caminho para a regularização fundiária na Amazônia

Lélio Costa da Silva, atual presidente da Companhia de Administração e Desenvolvimento das Áreas Metropolitanas de Belém, conta que antes da chegada da Alexandra na Secretaria de Patrimônio da União as populações ribeirinhas extrativistas da Amazônia viviam na invisibilidade e total insegurança jurídica de suas posses.

“Alexandra coordenou a construção do maior programa de inclusão socioterritorial na região amazônica. Só no Estado do Pará foram beneficiadas mais de 50 mil famílias ribeirinhas,” revela o então superintendente do Patrimônio da União no Pará.

Depois disso, esse modus operandi firmado pela Alexandra, foi implantado em outros Estados. Vale lembrar que até hoje esse é um dos grandes problemas da Amazônia e de outras regiões.

Depoimentos e homenagens

 Alexandra presente sempre

Por Patrícia de Menezes Cardoso, advogada e ex-Coordenadora de Regularização Fundiária da Amazônia da SPU/Ministério do Planejamento.

“Uma liderança feminina que nos ensina a não temer, mas a honrar o poder feminino, partilhando-o de forma generosa e amorosa, sempre com um olhar sistêmico entre a dimensão interpessoal e institucional. Transformou as pessoas e as gestões públicas por onde passou.

 Seu legado é imensurável, assim como sua contribuição para a efetiva transformação social. Com a benção dela, coordenei as ações de regularização fundiária na Amazônia brasileira, efetivando a função socioambiental do patrimônio da União como patrimônio de todos, em especial os diferentes povos formadores de nossa sociedade. Alexandra foi a primeira Secretária Nacional do Patrimônio da União a compreender o relevante papel da SPU, fortalecendo seu papel estruturante para a preservação dos povos e biomas do Brasil.

 À frente da Secretaria de Patrimônio da União,  de 2003 a 2010, a arquiteta e urbanista, Alexandra Reschke, implementou uma verdadeira revolução na gestão do patrimônio imobiliário da União, por meio de um processo coletivo, contínuo e gradativo de mudança na visão de como usar esse importante recurso em benefício à redução das desigualdades e apoio às políticas públicas prioritárias, entre as quais habitação e regularização fundiária de interesse social, reconhecimento de direitos de povos e comunidades tradicionais, de preservação ambiental.

 Foi a primeira a conceber a amplitude e diversidade do patrimônio público federal, para muito além da habitação social nas grandes cidades.

 Até 2003 a principal característica da gestão do patrimônio imobiliário da União era privilegiar o uso dos bens imóveis com vistas a gerar receitas e reduzir custos. Mesmo com a aprovação da Constituição Federal Cidadã em 1988, foi a partir da intensificação das lutas sociais, rurais e urbanas pela inclusão social e territorial que se iniciou um novo período no Brasil. Alexandra, sempre antenada, se colocou à disposição para construir um novo paradigma de destinação de terras e imóveis públicos para quem mais precisava.

 O significado dessa mudança radical de olhar e de entendimento trouxe inspiração coletiva para a redefinição da missão institucional da SPU: conhecer, zelar e garantir que cada imóvel da União cumpra sua função socioambiental, de forma harmônica com a função arrecadadora e em apoio aos programas estratégicos da Nação.

A partir desse novo paradigma, Alexandra foi uma maestra incansável na formulação e articulação de novas formas de se fazer política pública.

 Sua missão interna era a sensibilização e o engajamento das equipes da SPU para a construção de um novo órgão, voltado ao desembaraço de imóveis públicos federais para serem destinados em prol do bem comum, em apoio a políticas setoriais que efetivamente contribuíam para a redução das desigualdades e o aprimoramento da relação do Estado com a sociedade brasileira.

 Sua postura sempre partia da empatia, do cuidado, do engajamento, da criação de laços, da escuta e das práticas diárias que possibilitaram uma mudança expressiva na atuação coletiva. Alexandra deixou um legado na SPU conhecido e defendido por grande parte dos servidores efetivos do órgão até hoje.

 “Eu fiz parte dos que buscaram exercer o poder como um serviço à sociedade, o que começava por incluir os servidores em todo o processo, uma vez que nós estávamos ali de passagem e eles é que ficariam. São eles os responsáveis pela continuidade de programas e projetos, enquanto serviços inerentes àquele determinado órgão. Se queríamos mudar a cultura interna, era necessário garantir a participação e o envolvimento dos servidores”. Essas são as palavras da Alexandra.

 Seu legado pela cooperação permanece e permanecerá. Alexandra se envolvia profundamente nos processos que estavam sob o seu comando, buscando proporcionar ambientes colaborativos e decisões compartilhadas, ciente de que as relações horizontalizadas e trabalho participativo sempre exigirá muito mais maturidade e habilidades das pessoas envolvidas.

 Em 2007, ela foi premiada em inovação em políticas públicas pela Escola Nacional de Administração Pública pelo Projeto Nossa Várzea da SPU/Pará, o percursor da inclusão socioterritorial de população ribeirinha na Amazônia.

 Alexandra também participou da gestão municipal de Porto Alegre e Santo André, da gestão do Distrito Federal contribuindo com as políticas de habitação de interesse social. Foi assessora da liderança do PT na Câmara dos Deputados com incidência marcante na aprovação da Lei do Estatuto da Cidade. Também desenvolveu trabalhos em apoio à gestão municipal na Amazônia liderada por indígenas Ashaninka e junto ao Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS)”.

Mais depoimentos

Depoimento pessoal de Lélio Costa

Nota do Governo Federal

Nota do Ministério da Inovação e Gestão em Serviços Públicos

Post do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU)

Nota da Federação Nacional de Arquitetos e Urbanistas

Nota do Sindicato de Arquitetos e Urbanistas do Estado de São Paulo

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