Jurema Finamour, uma jornalista a ser lembrada e estudada

Christa Berger desvendou a história de uma mulher que foi uma das pioneiras do feminismo no Brasil pela sua forma de se manifestar

Agora todos podem saber quem foi Jurema Finamour. Sua história foi publicada pela professora Christa Berger, que a redescobriu e contou os feitos dessa mulher muito à frente do seu tempo. Ou melhor, depois da Libretos ter lançado Jurema Finamour – a jornalista esquecida. A biografia traz diversos fatos onde os emaranhados da História das décadas de 50, 60 e 70 são apresentados de uma forma honesta e sem rodeios. Bem como é a autora do livro, que procurou a editora porto-alegrense sem qualquer pretensão, por ter descoberto tantas informações relevantes sobre uma autora que tinha lido na adolescência. A obra da professora Christa Berger denota vários lados do significado das atitudes dessa ousada jornalista.

Christa revela que até hoje não houve uma jornalista como a Jurema na imprensa brasileira. “Igual a Jurema, não. Pois ela foi uma jornalista de muitos livros, que passou por diversos órgãos de imprensa. Morou em muitas cidades. A sua singularidade não se repete, mas outras mulheres que também produziram e tiveram vidas interessantes estão à espera de serem descobertas”, completa a autora em resposta a minha pergunta.

Uma obra que fisga

A obra me prendeu do começo até as últimas páginas. Apresenta muitas referências, linha do tempo, fotografias em suas 300 páginas. Com uma narrativa nada linear, a professora de teoria da comunicação – Christa teve milhares de alunos na Ufrgs, PUCRS e Unisinos – foi soltando fatos e versões em pitadas, colheradas. Formou um caldo, uma receita imbatível para costurar tantos acontecimentos.

A cada capítulo apresentava surpresas de um jeito que me intrigava e eu me indagava: mas o que mais pode haver mais depois disso? Um livro que merece ser degustado por todos que sabem o valor de uma boa apuração jornalística. A autora foi salpicando situações, enumerando nomes bem conhecidos da política, da música, da cultura brasileira e internacional que tiveram ligação com Jurema, no auge de um Rio de Janeiro em ebulição cultural.

Christa levou sete anos desvendando a história da primeira editora de uma revista feminina no Brasil, a Mulher Magazine. E que escreveu 18 livros ao longo de sua vida! Christa foi uma professora marcante na minha vida. Gostei demais de tê-la reencontrado em razão desse lançamento. Ela suscitou dentro de mim coisas que ainda estou processando, que estavam adormecidas. Ela me contou que inicialmente não pensava em escrever um livro. “Foi curiosidade pessoal. Saber quem ela era e o que havia escrito. Como achei muitos livros e os prefácios eram de pessoas importantes da época, a curiosidade foi se transformando em projeto para publicar um artigo. À medida que a pesquisa avançava, vi que tinha material para um livro”.

Uma bela edição

A pandemia atrasou a vida de muita gente, mas para Christa o recolhimento exigido pela Covid-19 ajudou na estruturação da obra. Ela pesquisou em arquivos públicos, digitais, inclusive contratou um escritório de advocacia no Rio de Janeiro, para ajudar a desvendar o inventário da jornalista esquecida. Mergulhou fundo para saber mais quem foi a mulher que teve tantos amigos, mas que foi esquecida por tanto tempo.

Jurema foi perseguida durante a ditadura. Amiga de personagens históricos, como Drummond, Vinicius de Moraes, Pablo Neruda e muitos outros. Por ser uma figura de relevância nacional, o título poderia ter saído por uma grande editora. Mas não. Eis as palavras de Christa: “Eu acho importante valorizar o trabalho das editoras locais. E hoje a venda pode ser online, a divulgação via redes sociais. A Libretos é uma editora que eu aprecio pela qualidade da edição, o que confirmo com meu livro. A Clô Barcellos deu ao livro uma capa, caderno de fotos, edição e divulgação elogiadas e reconhecidas. E foi muito bom acompanhar de perto o processo da edição propiciado por estarmos na mesma cidade”.

Christa já deu entrevistas para vários veículos. A divulgação do livro está, aos poucos, ganhando espaço na imprensa. A publicação já está na segunda edição. A primeira esgotou em poucos meses (o lançamento foi na Feira do Livro de Porto Alegre, em 2022). “Acho legal esse jeito mais devagar de o livro ir achando o seu lugar”, sentenciou.

A humildade da professora impressiona. No evento na Associação Riograndense de Imprensa (ARI), no dia 24 de junho, ela chegou a dizer que “não se sentia com autorização moral” para escrever porque a maior parte da sua trajetória foi em sala de aula, não em redações. Para ela, “foi uma realização como jornalista” ter escrito o livro. Christa fez um curso sobre como preparar biografias, buscou ajuda de filhos de amigos, contratou uma ex-aluna para lhe auxiliarem na empreitada.

E não tinha expectativa. “Minha expectativa era de que o livro fosse lido. Por mulheres, por jornalistas primeiramente e ampliando para outros leitores. Isso tem acontecido e tem me gratificado”.

Professora Christa no evento da ARI, ao lado da jornalista Jurema Josefa

 

Amnésia histórica de gênero

Sobre o “cancelamento”, como chamam hoje, sobre o caso da jornalista, Christa ressalta: “No livro e nas minhas falas tenho procurado não ser conclusiva sobre o apagamento da Jurema. Por um lado, porque ela faz parte de um conjunto de mulheres – produtivas, interessantes, que tem um legado a ser registrado – e que estão na posição que a estrutura patriarcal da memória lhes dá. Podemos chamar de amnésia histórica de gênero. Por outro, a Jurema é uma mulher que afrontou valores e comportamentos da época. Podemos apontar a singularidade dela como fator privado para o esquecimento. A denúncia que fez do comportamento machista de Neruda, sem dúvida faz parte do conjunto de variáveis que a tornou esquecível”.

Reflexões sobre o apagamento

O enredo me tocou também porque acompanhei pessoas absolutamente geniais, maravilhosas que encerraram seu ciclo por aqui sem qualquer reconhecimento. Mais que isso: como não comungavam dos mesmos valores do status quo de seus familiares – mesmo que tenham deixado bens para seus descendentes de sangue – foram completamente esquecidas, abandonadas pela sociedade, pela mídia, embora tenham cunhado um legado em prol da coletividade, do bem comum.

Tem muita gente que se dá mais com amigos do que com a própria família. Só que na hora da morte, é a família que decide o que será feito com o que restou. E isso aconteceu com a Jurema. Talvez pelo fato dela ser autêntica, com opiniões que contrariavam os “donos do poder, das narrativas”, seja de direita ou de esquerda, colaborou para que todo seu brilhantismo fosse apagado ao longo do tempo.

No tempo de Jurema, muitos se informavam por jornais, livros, pela escrita. O mundo girava em outra velocidade. O ritmo do tempo possibilitava que os encontros fossem em volta de mesas, jantares, com trocas mais próximas, mais olho no olho. A partir do levantamento da professora percebi que devem ter existido e ainda existem muitas outras Juremas por aí. Mulheres que fazem muito em vários lados do balcão, mas que não têm seu valor reconhecido.

A história mostra o quanto tudo depende da energia dos amigos e da família no final da vida. Muitas coisas ficaram no ar sobre o que pode ter acontecido com Jurema. Ainda bem que temos pessoas como a Christa que resgatam a história de gente que ajudou a escrever o rumo da nossa trajetória. Pois ser mulher, jornalista e ter autonomia, trabalhar e escrever aquilo que se julga necessário, é algo que até hoje é problema. E o lançamento do livro já está provocando impactos. O preço dos títulos de Jurema Finamour que a Christa achou em sebos por cinco reais, hoje já estão sendo vendidos por 20.

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Jurema é também como é chamada uma árvore da caatinga e do agreste que tem sua casca utilizada para a fabricação de uma bebida mágica que concede força, sabedoria e contato com seres do mundo espiritual. O culto à árvore Jurema remonta a tempos imemoriais, anteriores, inclusive à colonização portuguesa na América. Diversas tribos indígenas da atual Região Nordeste do Brasil, reverenciavam a Jurema por suas propriedades psicoativas, inserindo-a em diversos ritos de comunicação com as divindades de seu panteão através do transe, alguns dos quais ainda preservados pelas comunidades da região.

Foto da Capa: Christa Berger e a capa do livro / Divulgação

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