O que é, o que é: tem boca, é levantado e está prestes a sair da cidade?

Reciclagem, crise climática, biodiversidade… são temas ainda distantes da população

“Oi, você até pode me ignorar. Mas eu sei tudo que você não quer mais. Ou melhor, tudo que você quer tirar da sua frente. Tudo que define o que você consome. Especialmente se você não se preocupa com o destino do que não quer mais.

É muito comum me encherem de coisas, restos, objetos que poderiam ser reaproveitados ou irem para a reciclagem. Estamos vivendo um momento em que muita gente é obrigada a catar materiais recicláveis dentro de mim porque até hoje a maior parte dos moradores da cidade não separa os resíduos – é comum ser muito maltratada.

Não sei o que é mais cruel: me entupirem até me deixarem de boca aberta com sacolas de todo tipo de material que poderia virar adubo ou ser recolhido pela Cootravipa ou quando me obrigam a ficar de porta aberta. Quando não roubam minha porta para virar sei lá o quê. Podem até desmanchar essa parte do meu corpo.

Já vivi situações absurdas, como flutuar pelas ruas quando há alagamentos. Também, é comum ver as bocas de lobo perto de mim cheias de lixo. Sim, ainda tem gente que solta coisas que acabam prejudicando o escoamento da água! Isso é dramático em áreas onde a permeabilidade do solo é a dona do pedaço. Quer dizer, quanto mais calçamento, asfalto e menos árvores, espaços com verde, é muito maior a probabilidade de ocorrer alagamentos.

Outra situação que me incomoda demais é quando as pessoas, em especial homens entram dentro de mim e ficam me remexendo. Puxa, isso me causa muita dor. Isso mostra o quanto a cidade que já ostentou o título de Capital de melhor qualidade de vida deu pra trás no quesito desigualdade social.

Para terem ideia, a cooperativa que cuida da limpeza urbana conta com três mil pessoas. Dessas, boa parte são garis que limpam a cidade porque os moradores de Porto Alegre largam tudo que não querem mais, como móveis, mesas, armários, tábuas e até restos de obras em mim, próximo ou encostados em mim. Órgãos públicos, quarteis da Brigada Militar, bares e restaurante deixam do meu lado caixas de papelão, centenas de garrafas de vidro (vale lembrar que é o material que pode ser reciclado inúmeras vezes). Esses dias até um rolo de plástico bolha novinho em folha me colocaram goela abaixo.

Falta educação, noção do que significa o desperdício por me tratarem tão mal. Aliás, não só a mim, mas aos resíduos de uma forma geral. Hoje não passa de uns 5% o volume do que é reciclado na capital gaúcha. Quando o caminhão vem me levantar para descarregar tudo que tem dentro de mim, precisa ter um funcionário que acompanhe e ajude a fazer o serviço. O motorista do caminhão não consegue fazer isso sozinho, pois quase sempre estou rodeada de outras coisas.

Ouvi dizer que há gente que não separa e destina seus recicláveis para os catadores porque não conseguem esperar o dia da coleta. Uns dizem que não tem espaço em casa. Outros são preguiçosos mesmo. E outros não estão em casa na hora que o pessoal da coleta seletiva passa. Fico realmente chateado porque colocam a culpa em mim quando falam que a cidade está suja.  Eu sou só um lugar para se colocar resíduos orgânicos. Quem manda e vive na cidade é que precisa ter responsabilidade com o que gera.
Eu tenho sido muito maltratado nessa cidade. E mais, faz mais de 10 anos que estou nas ruas em 19 bairros e ainda não aprenderam a lidar comigo. Entrará no meu lugar um móvel menor que eu, com menos da metade da minha capacidade. Meu substituto será de plástico duro, o polietileno, mas acho que de matéria-prima virgem. Segundo um colunista do jornal ZH, em vez de 2,5 mil unidades iguais a mim, agora serão seis mil dessas de plástico. Se não se preocuparem em comunicar direito para as comunidades – as mais abastadas de Porto Alegre – não sei se valerá a pena essa mudança.

Será que as pessoas tem noção do quanto se gasta só para resolver a gestão dos resíduos? Três milhões por mês para só para enterrar o que colocam dentro de mim! Sem falar nas dezenas de viagens por dia da Estação de Transbordo, na Lomba do Pinheiro, até Minas do Leão, o que dá mais ou menos 100 km. Como o pessoal não colabora, já diminuiu em cinco anos a vida útil do aterro. É pra lá que vai tudo que as pessoas acham que não tem valor de umas 300 cidades (dá pra imaginar quanta coisa boa, excelentes matérias-primas estão sendo enterradas??)

Não vejo a hora de ser valorizado. Respeitado. Falam dessa tal economia circular. Pois o que falta mesmo é a cultura e a consciência de gente de todo tipo que precisa reciclar seus conceitos. Muita gente ainda acha que os resíduos simplesmente desaparecem quando saem da sua frente. E não existe fora, já disseram em campanhas do Fashion Revolution.

Desejo boa sorte às grandes lixeiras de plástico, pois eu, o contêiner, vou ser tirado do time de campo. Só não sei quando. E até quando.”

Para entender o contexto

O que você leu acima foi escrito depois de eu ter participado de um encontro da empresa Síndicos de Valor, que reuniu representantes da prefeitura de Porto Alegre e da Cootravipa com síndicos. Ficou muito evidente o quanto faltam informação para esses gestores. No evento, foi explicado o porquê de os condomínios entregarem seus resíduos para a coleta oficial da prefeitura. Os catadores clandestinos (os que passam antes da coleta) têm provocado muitos problemas à municipalidade. As 16 Unidades de Triagem oficiais precisam do seu resíduo para que centenas de famílias sobrevivam.
Também porque dei palestras sobre resíduos nas turmas de oitavo ano da Escola Estadual de Ensino Fundamental Dr. Pacheco Prates, em Belém Velho, na periferia de Porto Alegre na semana passada. Perguntei aos estudantes se onde moravam faziam a separação dos resíduos. Em uma das turmas, de 24 alunos, cinco responderam que a família fazia. No decorrer do período, fui percebendo que há total falta de noção sobre o assunto.

Senti que nesse tema, assim como outros que venho trabalhando, como a crise climática, a necessidade de se compreender o quanto está tudo interligado, a proteção da biodiversidade etc., precisam ser abordados de formas diferentes tanto dentro como fora da sala de aula. O jornalismo, as mídias, os veículos de comunicação não estão dando conta de informar o quanto nossa sociedade precisa estar antenada às urgências do mundo. Quero estar mais perto de alunos, professores, síndicos para transmitir, trocar, aprender mais sobre como podemos encontrar juntos soluções para esse e tantos outros desafios.

Luz no fim do túnel

Precisamos manter a chama da esperança acesa. Confira algumas inovações para a redução de resíduos: uma pesquisadora da Ufrgs descobriu como fazer uma embalagem biodegradável que muda de cor conforme a validade do produto perecível.

Outra pesquisadora, também do Rio Grande do Sul, desenvolveu uma embalagem biodegradável a base de colágeno e óleos essenciais.

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