Eu, tu, nós precisamos nos adaptar

Encarar a crise climática exige planejamento e arquitetura compatíveis com os eventos extremos

Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia

Não encho mais a casa de alegria

Os anos se passaram enquanto eu dormia

E quem eu queria bem me esquecia

Será que eu falei o que ninguém ouvia?

Será que eu escutei o que ninguém dizia?

Eu não vou me adaptar, eu não vou me adaptar

Eu não vou me adaptar, eu não vou me adaptar

Os versos de Arnaldo Antunes e Nando Reis nos remetem a uma situação desafiadora: a adaptação. Ao contrário do que esses integrantes da lendária banda Titãs cantam, eu, tu, eles, nós, vós, eles – todo mundo – vai ter que se adaptar ao Antropoceno, a era onde o clima foi alterado pela nossa espécie.

Se dar conta dessa necessidade é um começo para sair da inércia. Precisamos encarar a realidade. As temperaturas altas, os eventos extremos, os incontáveis impactos do que estamos enfrentando estão nos levando a situações insustentáveis, tanto no varejo quanto no atacado.

Não fugir da raia, enfrentar o que isso significa é o grande X da questão. Culturalmente, as pessoas tem uma baita dificuldade de mudar. É muito comum, especialmente entre nós, brasileiros, empurrar as coisas com a barriga, fazer o urgente e deixar de lado o que pode ser feito no longo prazo.

Se nem um médico dizendo claramente que é preciso deixar de fumar, beber, comer guloseimas para se ter uma melhor qualidade de vida ou aumentar o tempo de permanência de existência, são suficientes para que muito abdiquem dos pequenos prazeres, dá para imaginar o que acabam optando nossos governantes. Para a maioria, a prioridade são os próximos quatro anos, a reeleição, o poder.

A complexidade se intensifica ainda mais porque as mudanças necessárias implicam em decisões de alguns que impactam milhões de habitantes do planeta. Embora esse cenário seja ultra desafiador, não podemos perder a esperança. Cada um pode tentar melhorar o que o cerca. Nem que seja na sua própria moradia. Meu sobrinho Mateus me indicou o perfil @alex_o_sartori no Instagram sobre arquitetura, que promove vários insights relacionados à arquitetura e ao urbanismo.

Aprender observando as construções

Estou passando uns dias no litoral gaúcho. Caminho direto entre as casas, pequenos condomínios, alamedas e pela beira do mar de Xangri-Lá. E tenho observado o quanto o planejamento urbano e a construção de edificações precisam adotar o mais rápido possível medidas de adaptação climática (isso que nem vou pras bandas de Capão). Ainda mais na nossa extensa planície costeira, onde as correntes de vento predominam determinando até a forma das árvores nativas (já viu o formato de figueiras?).

A casa onde estou tem uma localização com características bem distintas da que costumo ficar. E isso faz toda a diferença. Creio que todos que projetam suas casas precisam considerar os mecanismos de funcionamento da ventilação, a posição do sol, a drenagem, a necessidade de área verde. Isso não é nenhuma novidade. Há muitas civilizações que já vem dando aula sobre isso.

Porém, de umas décadas para cá, a sanha imobiliária do lucro a qualquer preço coloca no mercado imóveis que são “bonitinhos, mas ordinários”. As casas de hoje são caixas, cheias de vidro, com ar condicionado e completamente descontextualizadas com o ambiente onde foram inseridas.

Saída do esgoto pluvial de Xangri-Lá

2023, o ano mais quente da história

Nesta semana, foi divulgado pelo Observatório Copernicus que 2023 foi o ano mais quente já registrado na história. Todos os 365 dias tiveram temperaturas 1ºC acima da média do período pré-industrial (1850-1900). Desde lá, a emissão gases de efeito estufa aumentou progressivamente. Metade de 2023 teve calor 1,5ºC acima da média, e dois dias de novembro chegaram a 2ºC – os mais quentes em 100 mil anos. O calor extremo também foi agravado pelo El Niño, o aquecimento anormal das águas do Oceano Pacífico.

Como já escrevi aqui no Sler em algumas colunas, se já sabemos que os estados do Sul são altamente afetados por eventos extremos, incluindo ondas de calor, está mais do que na hora de acordarmos para a era do Antropoceno. Mas como incluir prefeituras e vereadores do Litoral nesse processo de adaptação? Confesso que essa é uma pergunta inquietante, de difícil resposta.

O que fazer em casa

Se a intensidade da chuva é maior, bora aumentar a largura das calhas. Se as temperaturas estão beirando os 40 graus, precisamos de mais verde, melhorar a drenagem, pensar formas e utilizar materiais de construção mais resilientes e que não aumentem o calor dentro de casa.

Onde moro, temos adotado algumas medidas na tentativa de amenizar fortes e intensas chuvas. Recolhemos a água da chuva e regulamos o que podemos a vazão. Temos um telhado verde, que ajuda a diminuir temperatura e as plantinhas ainda absorvem um pouco da chuva. Plantamos árvores em vasos e muitos, muitos vasinhos com micro jardins.

Vivemos situações que tempos atrás jamais imaginamos. Por isso mesmo que tanta gente não quis sair de casa nas enxurradas e enchentes no Vale do Taquari e no Vale do Caí. Na capital gaúcha, assim como muitas outras cidades, a precipitação intensa em pouco tempo tem sido comum. Os alagamentos em vários pontos de Porto Alegre denotam isso. São cada vez mais frequentes.

Árvore de limão tahiti plantado no meu pátio

Adaptação de dentro para fora

Suspeito que aqueles que são mais flexíveis, pouco participativos da turma do “eu é que sei”, sofrem menos em se adaptar. Há uma linha tênue entre a convicção do “nunca aconteceu isso antes” e o saber ler o que é menos pior diante de uma situação.

Confesso que, ao longo da minha vida, vivi diversas situações onde a necessidade de se adequar foi algo imperativo para minha sobrevivência. Viajei de mochila sozinha pela Europa (ah, tempo bom do 1 dólar= 1 real), acampei muitas vezes com amigos e perdi a conta de quantas casas de desconhecidos eu dormi. Aprendi a ser descolada desde cedo, pois era a única forma de viajar quando estava sob a guarda dos meus pais, que não tinham o hábito de sair de casa, com exceção de visitar as filhas que moravam longe.

Até hoje abrir mão de confortos, ficar hospedada em ambientes avessos ao que estou acostumada, me ajudam –  creio – a me tornar mais atenta à flexibilidade. Transitar por situações e contextos diferentes contribui a valorizar o que temos. É claro que há questões inegociáveis. Até por isso precisamos exercitar o que está ao nosso alcance aceitar ou não.

Porém com a natureza, com as previsões climáticas, é quase impossível negociar. O clima em quem dá o tom, o ritmo, o andamento. E aí, todos nós precisamos nos preparar. O fato é que todos devem cantar: eu vou, me adaptar: eu vou, me adaptar… Bora fazermos técnica vocal, pelo menos?

Foto da Capa: Avenida Borges de Medeiros, na região central de Porto Alegre | Acervo da Autora

 

Texto publicado originalmente na SLER

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