Os porquês de Onde o verde vence o tijolo

Quem se depara com minhas peças não imagina o que está por trás da confecção de cada uma. Durante a exposição Onde o verde vence o tijolo, no Festival da Primavera no Vila Flores, contei um pouco do processo de construção dessa coleção, que começou lá por 2015.

Detalhes captados pelo olhar atento da Lúcia Guaspari. Em algumas peças, escrevo. Versos e frases que saem na hora da modelagem.

Há uma ligação ao trabalho que venho desenvolvendo como jornalista socioambiental e a minha conexão com a argila da minha terra natal Cachoeira do Sul. Mas só fui percebendo isso, ao longo de anos colocando a mão no barro. Minha relação com linguagens artísticas é antiga, sempre fui frequentadora de aulas de música, pintura, participei de corais. Fui da primeira turma do Atelier Livre de Cachoeira do Sul, comandado naquele tempo pela brava Eloisa Vidal, uma mulher muito a frente do seu tempo. Também fiz um ano de “Belas Artes”, na então Escola Superior de Artes Santa Cecília, áureos tempos, nessa época a cidade tinha uma efervescente programação cultural. E eu cantava no coral da Univale, sob a batuta da Marucia Castagnino, ainda era a tesoureira que arrecadava a grana dos coralistas e da própria comunidade para viajarmos para a Argentina.

Mas depois que vim pra Porto Alegre, pela exigência da profissão, não consegui mais me envolver com as artes visuais, até ir para The Internacional Peoples College, na Dinamarca. Lá tive meu primeiro contato com a cerâmica, em 1996. Depois disso, voltei a modelar em 2001, no Atelier da Izane Schul, e nunca mais parei.

Imagem captada pela Lúcia Guaspari. Vejam que aproveitei uma gaveta dessa mobília para colocar uma peça dentro. As mudinhas são cultivadas por mim. Elas não costumam crescer muito devido ao espaço (isso acontece com gente também). Aliás, muitas vezes, já me senti que nem elas..

Mas o que tem a ver o tijolo de Cachoeira com tudo isso, pode estar se perguntando. Venho experimentando diversa argilas e procuro, sempre que possível, utilizar a matéria-prima da região onde trabalho. Com a doença da minha mãe e as frequentes idas à Cachoeira, disse a mim mesma que deveria ressignificar a passagem pela minha terra natal.

O processo

Comecei experimentando a argila da olaria Kipper, que fica em uma das entradas da cidade. Pegava da linha de montagem partes de tijolo cru. Depois, ia tirando partes e modelando conforme meu inconsciente mandava. Saíram diversas formas. Flor, vagão, barco e muitas outras formas indefinidas. Após secas, as peças foram queimadas em 980 graus. Depois disso, passaram por um processo de esmaltação e retornaram para o forno, na mesma temperatura, considerada baixa para os ceramistas.

Ao ficarem prontas, plantei mudas de espécies que cultivo na minha área ao ar livre no oitavo andar do prédio onde moro, no coração de uma região densamente ocupada em Porto Alegre. A ideia foi plantar espécies resilientes, que aguentassem a pressão, o espaço exíguo, as intempéries. Tal como são os habitantes do ambiente urbano. Cuido delas, pelo menos, dia sim, dia não coloco água, pois o ambiente em que ficam é muito quente. Pra mim estar atento ao crescimento delas é uma forma de arte. É um bioindicador da minha qualidade de atenção.

Já produzia vasos com suculentas desde 2003. Depois de fazer muitas peças, fui me dando por conta que o processo de desconstrução de um tijolo, que faria parte de alguma parede, muro ou edificação, deixaria de promover o cinza. Isso me dava um alento, um certo prazer, pois pelo menos aquela parte iria dar um espaço à vida.

Desmonte da área ambiental

Naquele momento, acompanhava a destruição de muitas ações e projetos que tinha ajudado a erguer ( ainda continuam). Participei de ações governamentais e não governamentais que desapareceram ou foram enfraquecendo devido a inúmeros fatores. Crise econômica, o contexto político, transição planetária, enfim. Vale lembrar que hoje se sabe o que significa as áreas verdes da cidade, o quanto é necessária a permeabilidade do solo. Então, comecei a eu mesma fazer a “minha revolução” com os pedaços de tijolo cru. Pois ali, a transformação precisava só de mim para acontecer.

Valorização das raízes

Além disso, valorizar o insumo da cidade onde nasci, passou a ser outro ponto importante. Por muitos anos, não dei valor às minhas raízes. E utilizar parte do solo da Depressão Central do Estado passou a ser um resgate de muitas coisas que foram vividas lá. Sentia que não bastava mexer em uma argila qualquer, tinha que ser a de lá.

Hoje, com o fechamento da olaria Kipper, faço uma mistura de argilas de outras olarias do município. Fiz amizade com outros ceramistas da cidade e aprendi técnicas de preparo do barro. Já colhi material em barrancos e tenho feito incursões em locais distantes para encontrar matérias-primas. Também ampliei o meu espaço de trabalho com cerâmica no meu apartamento e sigo frequentando as aulas do Casa Nova Espaço Cerâmico, com a Suzana Campozani.

Onde o verde vence o Tijolo

Arte do convite postada em redes sociais.

Essa exposição tem tudo a ver com o local escolhido. O Vila Flores é um espaço com uma história incrível, um baita exemplo de mobilização e transformação. O antigo condomínio, desenhado pelo arquiteto José Lutzenberger, estava em avançado processo de destruição e foi recuperado pela família Wallig e pela comunidade.
Durante a apresentação, também mostrei um pouco do Diagnóstico Ambiental de Porto Alegre, do qual fui editora e co-autora, lançado pela prefeitura em 2008 (confira a entrevista no link abaixo). Desde lá, nunca mais se falou em novos estudos, em atualizar a ocupação e a situação da Capital. A Secretaria do Meio Ambiente tem perdido espaço e há poucos técnicos para dar conta das demandas.

Chamei a atenção de algumas pessoas, apontando para os mapas do Diagnóstico, os motivos de se alagar sempre determinadas áreas da cidade, os fatores de impermeabilização do solo (onde o tijolo, digo, o asfalto, as construções vencem o verde) e da necessidade de se manter árvores e outras formas de vegetação.

Uma das rodas de conversa que rolaram no evento. Pessoas de distintas tribos, conversando sobre um espaço que mostra o quanto é possível agregar criatividade, inovação e jeitos diferentes de fazer negócios.

No Festival da Primavera, consegui trabalhar meus lados de jornalista socioambiental, de artista e também de conectora e facilitadora de conversas. Vários amigos que não conheciam o Vila Flores foram lá e sentiram a energia do local. As conversas que saíram a partir da experiências pessoas com meio ambiente, com o espaço, com o inusitado, evidenciaram que a proposta possibilitou várias formas de entendimento do trabalho apresentado.

https://www.facebook.com/silvia.franzmarcuzzo/videos/2328987520477091/

Clique e confira minha entrevista com o arquiteto Fernando Lindemberger, que falou da mostra e do Diagnóstico Ambiental de Porto Alegre, que precisa ser atualizado.

Que venham muitos festivais, mostras e oportunidades para eu possa desenvolver distintas formas de chamar a atenção sobre a nossa situação em um mundo cada vez mais urbano e conectado. Porque o verde só pode vencer se nós cultivarmos a biodiversidade que habita dentro de nós.

Algumas das impressões de visitantes da mostra. Gostei muito do público do Vila Flores, que entendeu o sentido da proposta e me acolheu tão bem. Parabéns pra toda comunidade do Vila Flores, em especial ao pessoal da Associação, que me acolheu tão bem.

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