O impacto da vergonha alheia

Em que medida o discurso do vereador de Caxias do Sul expressa a opinião da região

O caso do trabalho análogo à escravidão na Serra Gaúcha a cada dia ganha novos capítulos. E, a cada episódio, sinto por tabela um sentimento mesclado de vergonha, nojo, tristeza, ódio, revolta. Além de ser inaceitável todo o contexto, tem gente e instituições que ainda defendem tanto as atitudes das empresas que contrataram como a que operou as contratações.

É um sentimento estranho e difícil de explicar por que essa mentalidade que foi expressa pelo tal vereador de Caxias de Sul e pela Câmara de Indústria e Comércio de Bento Gonçalves existe há tempo. É viva entre boa parte dos “oriundi” (os descendentes de italianos). Lamento dizer isso, mas na qualidade de bisneta de italiano sei que rola isso. E é bem mais forte naquela região, do que na Quarta Colônia, onde meu pai nasceu, ou outras regiões do Estado. O Rio Grande do Sul é um estado povoado por imigrantes, que chegaram com uma mão na frente e outra atrás. Os africanos não vieram para o Brasil porque quiseram, foram forçados. Os poucos indígenas que restaram resistem como podem aos inúmeros massacres que passaram e ainda passam.

Escrevo essas linhas com dor no coração. Por ser gaúcha. Por conviver com pessoas que amo, mas que tudo indica: pensam na inocência das tais vinícolas ou que o tal vereador tem razão. Gente que nunca saiu do seu quadrado. Que ainda acha que o Rio Grande do Sul é o Estado mais desenvolvido do Brasil. E, pior, que todos outros que têm outro ponto de vista, estão errados. Quanto engano. O estado dos gaúchos deu de ré de trator de esteira em muitas pautas que já foi vanguarda.

Com a ascensão do poder do ex-presidente e de tudo que ele representa, essas pessoas ainda se sentem empoderadas em verbalizar esses absurdos. Esse preconceito é algo que pulsa dentro de boa parte dos votantes do cara que quase se reelegeu. Em Bento Gonçalves, ele teve mais de 75% de votos a seu favor.

A opinião da professora de História e militante da Cultura Luiza Iotti é de que depois da homenagem ao coronel Ustra, conhecido torturador dos tempos de ditadura, feita pelo então chefe do executivo, foi aberta uma porteira para as insanidades. Para ela, essa situação das vinícolas “jogou na lama” muitos anos de trabalho pela valorização da cultura da região. “É muita vergonha, trabalho pela cidade, a gente se esforça pelo patrimônio histórico vem um cara desses e detona tudo”, desabafa a voluntária do Museu dos Capuchinhos. Luiza diz ainda que muita gente vem se posicionando e comentando que está com vergonha de morar da Serra.

É muito difícil dividir os mesmos espaços com detentores de valores da extrema direita nos dias de hoje. Luiza conta que faz o que pode para evitar essas pessoas. Vale lembrar que por causa dessa mentalidade famílias se dividiram, amizades foram rompidas e provocaram consequências nada agradáveis para todo mundo. “E mesmo agora, o Lula clamando pela união, as pessoas continuam raivosas, dizendo essas besteiras’, conclui indignada a historiadora.

A jornalista Vera Mari Damian nascida, criada e atuante na região de Caxias conta que pra ela não foi uma surpresa a atitude do vereador (acabou sendo expulso pela direção nacional do seu partido, o Patriotas). “Confesso que não me surpreendo, mas ainda me espanto. Fico me perguntando em que momento os descendentes italianos daqui esqueceram que são filhos de imigrantes miseráveis, sem condições de acesso à riqueza e excluídos de seu país de origem. Esqueceram a doutrina religiosa responsável por milhares de (lindas) igrejas e capitéis e deixaram de traduzir uma ética rigorosa que sempre ensinou sobre “amar uns aos outros”.

Vera é inconformada com o contexto, pois situações de racismo explícito eram raros episódios há pouco tempo. “Se antes víamos casos mais isolados, como o processo de uma funcionária negra contra o patriarca da Rede de Supermercados Andreazza por causa de uma (infame) piada racista, nos últimos anos o que se viu foi uma sucessão de pessoas se expressando nesta linha completamente à vontade. E o pior: com poucos desdobramentos policiais, judiciais ou institucionais, o que contribuiu para a normalização deste tipo conduta e eleição de políticos desqualificados”.

A jornalista acredita que agora a região pode aproveitar esta oportunidade para revisar esses valores distorcidos que se criaram. Até porque não se trata apenas das três grandes empresas envolvidas. Outros 23 produtores rurais também deverão ser indiciados por contratação de trabalho análogo à escravidão. Vera comenta que muitos outros produtores mantêm prática similar, ano a ano.

“Aqui na Serra dizem que a parte do corpo que mais dói é o bolso. Acredito que só vão aprender se pagarem muito caro por isto. De preferência em indenizações aos prejudicados, em investimentos para recuperação da imagem de seus negócios e em educação para a formação de uma nova cultura’.

As marcas divulgadas – Salton, Aurora e Cooperativa Garibaldi – já devem começar a sentir em breve consequências de tudo que isso significa. A Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) já suspendeu a participação das vinícolas de suas atividades. As três pretendiam participar de feiras internacionais e missões comerciais promovidas pela Apex, que as retirou da lista do Wines of Brazil. A medida vai vigorar pelo menos até que as investigações sejam concluídas. A agência tem a missão de desenvolver a competitividade das empresas brasileiras, promovendo a internacionalização dos seus negócios e a atração de investimentos estrangeiros diretos.

Também tenho visto muitas manifestações nas redes sociais de gente dizendo que não vai mais comprar produtos dessas marcas. Quem sabe assim, o pessoal aprende que o mundo está todo conectado e que o fluxo rumo à evolução civilizatória não tem volta. Pena que isso vai afetar a vida de muita gente que não tem a ver com os tomadores de decisão das companhias. Minha solidariedade a quem vive na Serra e não comunga com as opiniões de tantos votantes do ex-presidente. Minha solidariedade também a todos trabalhadores que são obrigados a cumprir jornadas extenuantes para conseguir sobreviver. Ainda virá muita coisa à tona que foi semeada por pessoas que se alimentam do ódio, do medo e do rancor. Oremos.

PS: Vale muito conferir a entrevista da historiadora Carla Menegat neste link

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