Nos trilhos da cidadania

Encontro em CTG no Morro da Cruz reúne representantes de movimentos de várias partes de Porto Alegre

Inicio da roda com facilitação da Adriane Ferrarini. Para todo mundo baixar a poeira e focar no momento presente.

Depois de uma semana cinzenta, sem o sol dar as caras (em vários sentidos), o sábado, 25 de junho de 2022 terminou com o brilho do astro rei e fogueira no Centro de Tradições Gaúchas Estância Pasqualetto no Morro da Cruz, em Porto Alegre. Mais que manter a chama acesa da luz no fim do túnel, a programação de co-criação do Congresso Popular de Educação para a Cidadania foi coroada com a apresentação das duas invernadas (assim é chamado um departamento de CTGs, no caso, refere-se ao grupo de danças): a Micuim e a Mirim do Grupo Gurizada Campeira.

 

Apresentação do Grupo Gurizada Campeira abrilhantou o evento, com várias demonstrações de comprometimento.

A apresentação de mais de 40 casais de crianças e jovens dos quatro a 17 anos, foi a cereja do bolo de um dia de intensa programação, cujo objetivo foi trocar ideias, conversar, escutar sobre o que deveria ter e ser o Congresso, que tem como objetivo levantar demandas e escutar a voz de comunidades distintas de Porto Alegre. A iniciativa dos coletivos Ponta Cidadania e POA Inquieta é envolver as realidades da capital para a edificação e o fortalecimento de uma cultura de educação cidadã.

Ao contrário de outros eventos do gênero que já trabalhei, como as conferências de meio ambiente do Rio Grande do Sul e do País, essa não tem apoio oficial de governos, muito menos patrocínio. É feita totalmente na raça, na vontade e no apoio de pessoas que estão doando seu tempo, recursos e energia. E quem se envolve no processo, sai com as baterias  renovadas. Quando saímos das nossas bolhas e nos permitimos ver como há gente fazendo a diferença, nos damos por conta de muitas coisas. É claro que precisamos estar abertos para isso. Por isso, vou tentar mostrar aqui um pouco da atmosfera do que rolou no sábado gelado de inverno.

Levei de casa os crachás e fiquei logo na entrada, dando as boas-vindas, colocando o nome no pedaço de papel em cada um que entrava. Confesso que perdi a conta quantos crachás foram feitos, pois extrapolou a contagem prévia que havia feito em casa. Como tinha que acompanhar a apresentação dos grupos, logo um grupo de meninas tomou conta da recepção, recortou mais papel e agilizou a identificação. Com certeza, mais 120 pessoas foram identificadas.

Sebaldo, de boné, segura o cartaz junto com Jorge Menezes, do Morro da Cruz. Apresentação do grupo 1.

Mas bueno, porque faço questão de registrar isso: porque foi nessa vibe que tudo aconteceu. Uns ajudando os outros para as coisas fluírem. Enquanto uns cozinhavam – o almoço foi delicioso – arroz de carreteiro com feijão e salada – feitos pelo pessoal da ONG Espalhe Amor, sob a batuta do Roque, outros trocavam ideias em grupos. Vale destacar a participação das crianças e dos adolescentes que, por sugestão do Sebaldo Murimel, da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac), se dividiram entre os seis grupos. Aliás, a colaboração e a participação da gurizada, merece um registro a parte, confira adiante.

Desejos de cidadania

Grupo animados na troca de ideias, com a anfitriã Luana, de boina, erguendo a mão ao apresentar suas ideias.

Os grupos apresentaram o resultado de uma conversa de uma hora e meia, onde se privilegiou dar a voz a quem geralmente não é ouvido, muito menos pelos governantes e pelos meios de comunicação dominantes.

No grupo 1, se destacou o quanto é preciso haver mais respeito, com oportunidades para todos. Para isso, seria necessário haver mais espaços para a construção de ações cidadãs, com estratégias de educação onde a família fizesse parte. Carmem Costa enfatizou que nunca é tarde para se reconstruir sua história, o que foi endossado por Sebaldo, que reforçou: “o crime não resolve nada’, mas a realidade só pode ser mudada se houver oportunidade. Como integrante da Apac, ele acrescentou que a importância das crianças e dos adolescentes é muito importante, porque talvez se ele tivesse tido essa experiência ele não teria passado pelo sistema penitenciário.

Já o grupo 2, lembrou o quanto é necessário enfrentar o racismo e a poluição ambiental. E Guilherme, de 13 anos, declarou: “E a educação precisa melhorar, tem professor que não está educando muito bem por aí”. O grupo salientou o quanto a igualdade e o respeito a diferentes saberes na construção da cidadania é fundamental.

O grupo 3 revelou o sentimento de quem não tem condições de comprar os materiais, de acompanhar os avanços tecnológicos de quem está na escola. Maiara, mãe da Sofia, moradora do Morro da Cruz, dividiu sua experiência, onde a escola não dispunha dos insumos necessários para os alunos. Há muitos desafios de se executar uma educação para a cidadania. E a cada encontro, vamos descortinando cenários que evidenciam o quanto os direitos das pessoas vêm sendo esquecidos pelo poder público. Ao mesmo tempo, os deveres ficam sem alicerce para que serem concretizados.

E ficou nítido: muitas leis não levam em consideração a realidade de quem a ela é destinada. Para isso, as comunidades precisam ser escutadas. E esta foi uma das tônicas do encontro: o congresso precisa escutar vozes como a de Maiara.

O grupo quatro foi apresentado por dois Gustavos, integrantes do grupo Gurizada Campeira. Eles deixaram claro o quanto sentem falta de locais para a conexão com a natureza, com água, árvores, espaços com menos ansiedade e mais calma. O grupo foi taxativo: precisamos ter mais calma, empatia, “não devemos descontar nos outros, pois cada um tem seus problemas”. Ou seja, o lado perverso da intolerância precisa ser encarado de frente, mas para isso, é urgente o planejamento de espaços de fala, de escuta, de diálogo. O membro do grupo Rodrigo Sabiá confessou que a atividade foi uma injeção de ânimo. “A gente não se sente sozinho, quanta gente tem soluções para problemas comuns”.

Henrique Medeiros, do Centro de Educação Ambiental da Bom Jesus, apresentou as conclusões do quinto grupo salientando a necessidade de se fazer um diagnóstico das periferias. Cada uma delas tem características diferentes, tanto sociais, quanto ambientais. “A Bonja é diferente da Restinga que é diferente do Morro da Cruz,’ sintetizou. Para ele, é preciso ficar claro que a iniciativa não é salvar o planeta, mas sim fazer conexões entre as diferentes realidades da cidade. Em suma: pavimentar caminhos para uma transformAÇÃO.

Uma das formas seria conhecer iniciativas, dar visibilidade às ações que já estão acontecendo, onde soluções estão sendo colocadas em prática para enfrentar os desafios e para que a comunidade aja como protagonista do processo. O grupo também salientou o quanto é urgente sair das redes sociais partir para a ação.

Facilitação gráfica da Luciane Lewis com a apresentação de adolescentes da Gurizada Campeira.

O encontro teve tem uma facilitação gráfica feita pela Luciane Lewis Xerxenevsky, onde os meninos desenharam suas aspirações: poder viver com segurança, estudar, trabalhar, brincar, dançar, cuidar da natureza, em resumo, poder viver num lugar com amor e paz.

Próximos passos para construção do evento

Em votação, foi definido que o evento será realizado no último final de semana de agosto. A ideia é dividir em grupos para que as tarefas consigam ser realizadas a tempo. Ainda não se bateu o martelo em como será a programação e o local onde será realizada. Mas a intenção é que as atividades sejam em lugares diferentes no sábado e domingo.  Os participantes querem que autoridades e representantes do poder público também participem do evento. A expectativa é ainda montar um manifesto com as principais deliberações.

“O encontro foi de mobilização, para debatermos qual é o denominador comum sobre o que é o congresso e qual o nosso propósito. Muito do nosso desejo, da nossa vontade de reunir e fortalecer essa rede de comunidades. E se preparar para agosto tirar um documento coletivo sobre o fortalecimento dos trabalhos comunitários. O tema central é educação para cidadania, um tema muito importante, onde cada um ajudou de uma forma. Mesmo a galera que não tinha muito recurso trouxe a sua contribuição. Foi um momento muito rico, muito bonito de construção, que vai culminar nesse congresso em agosto. A gente está na expectativa e muito feliz também,” explica Negra Jaque, liderança do Morro da Cruz.

Confira alguns depoimentos

Da esquerda para direita, Tuty, de óculos, da Misturaí, Iva, do Brasil sem Frestas, Cris Löff, do POA Inquieta e Nisse, do Misturaí e Ponta.                                                     “Desde o primeiro encontro no Nau, nós do Poa Inquieta tivemos aulas. Desde lá já fiquei em “modo aprendizagem”.  O que ouvi de lideranças comunitárias ou de apenas moradores dos bairros periféricos me deixou encantada com a capacidade de se expressarem de modo autêntico e do engajamento e da luta pela melhoria da vida deles e dos seus. São aulas de cidadania, com professores sem formação acadêmica ou “coaching”. Eles ensinam como superam as adversidades impostas por uma sociedade injusta, a que não se submeteram a aceitar como normal.  Eu escutei cada um com a humildade de quem tem muito a aprender. Para mim, o congresso já começou e quero que ele continue, para que permaneçamos aprendendo. As lições para a transformação que precisamos para alcançar uma cidade cidadã só pode vir deles. E garanto: chegaram em mim com doses generosas de carinho e sabedoria, como nesse sábado maravilhoso no Morro da Cruz. Aluna Cris Löff presente!”

“Que potência foi o evento, minha gente! A cada encontro nossa construção se fortalece e, ao seu tempo, faremos um grande congresso popular com o engajamento e representatividade que desejamos. Com educação e cidadania vamos juntos e juntos iremos longe! Quantas trocas e abraços de coração! Foi um prazer e uma alegria poder contribuir também na organização do evento, juntamente com um time nota dez, comprometido, que entregou muito! E foi sucesso!!”, Luciana França, a Tuty, organizadora do evento, voluntária da Misturaí.

“Coisa bonita o nosso encontro! Uma das propostas era escutar o querer das pessoas que vivem lá nas alturas mas que têm terra debaixo dos pés. E nós vimos… Como a educação cidadã acontece nas mesas de discussões, na partilha dos entendimentos, nas construções coletivas, nas diferentes idades humanas…  E o que falta para se ter os direitos básicos a educação de qualidade, a locomoção segura…e vai longe. Eles nos ensinaram e nos CONVIDARAM a participar da educação metodologicamente divertida e inclusiva, com muito carinho, congregando todas as gerações presentes nas danças típicas desse tempo,” Natália Soares, presidente do Instituto Ecoa.

“Foi um presente ter a oportunidade de “escutar” essa comunidade. As crianças, os jovens, as famílias, as lideranças. Quantos saberes, quanta cidadania. Parabéns a todos os envolvidos. Gratidão à recepção. Gratidão pela acolhida do patrão e da patroa. Sem palavras para expressar todos os sentimentos.

Susanna entre as crianças que mostraram os animais e local para os visitantes.

As crianças cuidaram de mim. Me levaram para conhecer todo o sítio. Me ensinaram como funciona todo o cuidado com os animais e com a natureza. Me mostraram onde eu podia subir, por onde podia caminhar, com o que deveria cuidar. Tive uma aula de cuidado com os animais e com a natureza,” Susanna Schwantes, pacificadora social, integrante do Poa Inquieta e do Ponta.

 

Gurizada deu  show em vários sentidos

Mais de 50 crianças participaram da programação. Algumas desde o começo de sábado, outras da apresentação e da festa junina que foi organizada com o apoio dos coletivos POA Inquieta e Ponta Cidadania.  E foi impressionante perceber a desenvoltura da meninada em ter orgulho em apresentar os animais, a lida no campo, em ajudar no que fosse preciso.

Marcelo, de lenço, à esquerda, assim como outros adultos, foram convidados para dançarem junto com a gurizada.

Marcelo Souza, o anfitrião do CTG conta que o grupo Gurizada Campeira foi criado há pouco mais de quatro anos (com a pandemia no meio) e que teve uma grande receptividade da comunidade. “Fiquei um ano e meio dando aulas, tudo que aprendi passei pra eles, e a educação, que dentro do tradicionalismo é muito importante,” explica. O grupo tem encontros duas vezes por semana, e conta com 120 inscritos. “Tivemos que encerrar as inscrições porque não tínhamos como dar conta”. “Nossos princípios e valores são baseados na cidadania, e trato a gurizada como se fossem meus filhos”, explica Marcelo. Ele é genro do dono da Estância Pasqualetto, uma área de cerca de três hectares no alto do Morro da Cruz. O grupo tem o apoio dos pais e da comunidade para promover festas e outras formas de angariar fundos para compra das pilchas, como vestidos, camisas, botas. Marcelo e a esposa Luana, tem quatro filhos: Fábio Henrique, 11 anos, Maria Joaquina, 6, Maria Angélica, 4 e Gabriel Henrique, 8 meses.

O comportamento da gurizada realmente impressionou. Durante a apresentação, mesmo com a música falhando, seguiram no ritmo com desenvoltura, sem errar o passo. Sinal de muito ensaio, determinação e foco. Era meninada ajudando na cozinha, colaborando com tudo, e, principalmente, participando ativamente das atividades nas rodas de conversa.

Depois das apresentações teve festa de São João, com distribuição de pipoca, cachorro-quente e fogueira. O dia foi marcante para todos que participaram das atividades.

E assim encerrou o dia… eu sentada, conversando com a Claudia Giongo, descortinando a paisagem. Amanhã vai ser um novo dia!

Clique aqui e saiba o que rolou no encontro realizado em maio no Nau

 

 

 

 

3 comentários em “Nos trilhos da cidadania”

  1. Kátia Madruga

    Sílvia,
    Grata por compartilhar esse conteúdo conosco que traz tanto sol e calor para este inverno úmido. Parabéns a todos os envolvidos por no processo de co-criação do Congresso Popular de Educação para a Cidadania. Que os desejos expresso pelos grupos possam se tornar realidade! Que seja o início de muitas construções!

  2. Luciana França

    Foi tudo tão especial!! O local, os anfitriões, a comida, a diversidade dos participantes, a forma como a comunidade do morro da cruz, especialmente as crianças, se expressaram e deram aula de cidadania através de atitudes de colaboração, comprometimento, de educação… Estava envolvida com o operacional do evento e não pude acompanhar a atividade de criação nas rodas mas testemunhar a apresentação de cada grupo foi um presente, muito especial testemunhar a potência do grupo e a vontade de transformar através da educação cidadã! Nosso 1o congresso está tomando forma, força e todos são bem-vindos!

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